Capítulo XII - Dois Voando

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E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?!

— Olavo Bilac, "Inania Verba"


— Três meses atrás —

— Você tem certeza disso? — Eros perguntou, com um sorriso de canto na boca cheia. — Acho que nunca o vi constrangido na vida, é interessante e assustador ao mesmo tempo.

Hermes riu: metade diversão, metade de nervoso, fazendo seus cabelos, agora violetas, dançarem como loucos sobre a sua pele amorenada e seus olhos brilhantes.

— Eu tenho... — murmurou, ainda encostado na porta que parecia temer abrir, soando quase resoluto. — Eu apenas... nunca mostrei isso a ninguém...

Eros entreabriu os lábios, mostrando ainda mais do preto dos seus olhos, surpreso. O carinho de Mercúrio por ele o impressionava constantemente. O deus dos ladrões olhava para o chão, ansioso e temeroso ao mesmo tempo, parecendo uma criancinha perdida. Cupido sorriu, aproximando-se do amante, dando-lhe um beijo lento, que o fez fechar os olhos, na superfície da boca escura.

— Sua confiança me honra. — o Amor murmurou, enquanto ele, distraído, deslizava as falanges pela sua bochecha, com aquele ar de adoração que sempre o deixava constrangido. — Mas agora eu estou morrendo de curiosidade aqui. Me mostre! — adiantou, tentando disfarçar a cor rósea das maçãs.

Hermes sorriu, feliz. E com um suspiro longo, finalmente abriu a porta.

Brilho.

Um brilho que, por um instante, praticamente cegou o deus do Amor. De todas as cores, de todos os jeitos, de todos os lados.

Estavam num cômodo comprido, de formato retangular, com apenas uma janela imensa, aberta para a luz, que refletia na superfície daqueles objetos. Que objetos? Todos os que você imaginar. Talheres, joias, peças de vidro, pedras preciosas, taças de metal, porcelana esmaltada, armas, esculturas, castiçais, espelhos, lanternas... Todos dependurados no ar, por um fio fino e transparente demais para se ver a olhos nus, em várias alturas e disposições diferentes, brilhando flutuantes pelo recinto todo.

Eros puxou o ar para os lábios, um formato de "O" na boca rosada, embasbacado. Quando Hermes o acordara dizendo que queria mostrar-lhe algo, com um semblante estranhamente inseguro, ele não perdeu tempo tentando imaginar do que se tratava, não iria estragar a própria surpresa. Mas, de alguma maneira, jamais esperou ser deslumbrado com uma espécie de obra de arte reluzente e lindamente caótica.

— Hermes... — ele balbuciou, virando-se para o amante que ainda permanecia quieto e contido na beira da porta. — É lindo...

Mercúrio deixou um sorriso sereno desenhar o canto da sua boca, vendo Eros se entremear no meio dos objetos suspensos, arrebatado como uma criança.

— Você roubou tudo isso? — ele perguntou tranquilamente, vendo-o assentir devagar, ainda parecendo temer alguma coisa. — Estão muito mais bonitos aqui do que de onde você os tirou, eu garanto. — cantarolou, cutucando uma escova prateada decorada com ametistas a sua frente, fazendo-a oscilar suavemente pelo ar. — Eu nunca imaginaria... — murmurou, agora rodeando todos os cantosdo lugar com seus olhos negros, colocando as mãos sobre os quadris. — Então é para cá que todos eles vêm. — constatou, rindo. — O caos é realmente belo, mas eu nunca o teria associado a você... — comentou, ainda distraído com todo aquele brilho.

— Não há caos, Passarinho. — Hermes murmurou no seu ouvido, Eros nem o tinha visto chegar, ele era muito sorrateiro, e agora rodeava sua cintura com afeto, colando o peito esguio as suas costas. — Eu ainda sou um deus da Razão. — declarou, começando a dar passos lentos para trás, levando o Cupido pelos quadris, junto. — Às vezes, tudo depende... — disse, parando com ele num lugar muito deliberado e específico. — ...do ponto de vista.

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