Capítulo XV - O Gato Vermelho

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Se eu te dissesse o que eu era
Você viraria as costas para mim?
E se eu parecesse perigoso
Você ficaria com medo?
Tenho a sensação apenas, porque
Tudo o que eu toco não é obscuro o bastante
Se o problema está em mim (...)
Um monstro, um monstro
Eu estou virando um monstro...

— Imagine Dragons, "Monster"

Apolo olhou para o líquido rubro dentro do seu copo sem levá-lo aos lábios, encarando o reflexo turvo das próprias íris azuis. Depois ergueu a face para o palco, onde o menino dos seus olhos ainda dançava loucamente, a música alta e frenética tamborilando em descompassos nos seus ouvidos. Então voltou os olhos para o copo. Para o menino. E para o copo outra vez.

Estava assim há uma hora.

"Eu vejo o Tártaro preso nas garras de um gato vermelho" Apolo se lembrava, pela octogésima nona vez. Tinha imaginado muitas coisas quando as palavras saíram do seu oráculo.

Mas nunca, nunca, nunca imaginaria aquilo...

*
— Cinco horas atrás —

— Perdão, o que disse? — Eros tentou, os lábios partidos, na esperança de que a sua mente finalmente estivesse cobrando pela insônia recente e lhe pregando peças. Qualquer coisa era melhor do que ele achou que tinha ouvido.

— Ele disse "Gigantes" — foi Apolo quem respondeu, num tom mortalmente austero e rígido, as íris cravadas a sua frente.

TUM!

O barulho continuava, cada vez mais alto, pesado e sombrio. E em toda bacada ruidosa, o chão sobre eles estremecia. Os tijolos do Palácio do Vinho rangiam. Aves celestes que cantarolavam displicentemente pelos jardins do Olimpo, alçaram voou num desespero coletivo, quase batendo as asas entre si. O ar começou a permear-se com um cheiro pinicante e desagradável de enxofre, podridão e piche.

Maldição. Apolo pensou, esticando a braço direito, num movimento treinado e já instintivo. O ar perto dos seus dedos começou a reluzir, tomado por faíscas erráticas sem origem nem destino, que apenas surgiam e morriam dentro de um espaço pequeno. Pode-se ouvir uma leve descompressão, parecida com o ar vasado ao se estourar um balão, quando as barreiras do espaço-tempo eram manipuladas e expandidas. Com esse som mínimo e mais uma série de lampejos elétricos, um arco dourado e elegante surgiu em sua mão.

Eros quase pulou para trás, num arquejo surpreso. Legal. Não evitou pensar, vendo o Sol também materializar uma aljava cheia. Não importa o que aconteça, ele vai ter que me ensinar isso um dia.

— Hermes... — Apolo chamou, num tom autoritário e urgente.

— Eu sei. — o irmão adiantou, as asinhas já empurrando o ar embaixo dos seus pés, elevando-o acima de todos. — Proteja-os. — Mercúrio pediu, embora seu timbre beirasse a exigência, dando um último olhar discreto para Cupido. Então partiu tão veloz que foi impossível acompanhá-lo com os olhos em segundos.

— Aonde ele vai? — Eros perguntou, a voz lhe saindo ligeiramente aguda.

— Reunir todos os deuses guerreiros que estiverem no Olimpo. — Apolo o respondeu sem olhar, acomodando a alça da aljava familiar e pesada em torno do peito. — Estamos muito perto. É provável que ainda não tenham ouvido.

TUM!

Um ruído particularmente alto ecoou pelo lugar, rachando a terra a poucos metros e causando um calafrio em Cupido.

— Ele v-vai lutar? — questionou, soando baixo e tremido.

— Vai. —Apolo retrucou mecanicamente, nem vendo o quando aquilo o deixou empalidecido — Agora vocês precisam entrar. — ordenou, virando-se para os três deuses que ainda estavam ali. — Voltem para o Palácio. Alertem os servos para que não saiam em hipótese nenhuma. Tranquem tudo pelo caminho. Se houver algum espaço subterrâneo, tanto melhor. Acomodem todos lá e esperem. — ele disparou todas as ordens numa constância ordenada e clara, como se fizesse isso todos os dias da sua vida.

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