Capítulo XIV - Um Culto à Éris

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Você trouxe o silêncio,
O som mais lindo que eu já ouvi,
Porque era onde você estava,
E agora você foi embora.
E todos os ruídos, todos os sons do mundo,
Não são altos o bastante para penetrar meu coração partido.
Olho para as estrelas, infinitas e eternas, e sussurro:
Volte para mim,
Volte para mim,
Volte para mim.

— Mia Sheridan, "A Voz Do Arqueiro"


O lugar tinha cheiro de cinzas, incenso e gases pesados. Das frestas mínimas no mármore do chão, subiam vapores esverdeados que irritavam as narinas. A pouca luz refletia nos cabelos compridos da menina, que bamboleava a cabeça em sintonia com a melodia que apenas ela ouvia, os joelhos no chão. De repente, jogou o pescoço para trás, expondo o rosto infante e um par de olhos violeta, que pareciam brilhar numa bioluminescência marinha, olhos muito mais velhos do que ela mesma.

— Diga-me o que vê. — ordenou o deus dos oráculos.

A menina, que já não tinha domínio sobre o próprio corpo, piscou desvairadamente sobre os globos completamente arroxeados, sem íris nem pupilas, e arreganhou a boca em dentes pequenos antes de cochear, numa voz áspera e velha, em total desarmonia a sua aparência infantil.

— Eu vejo... — o oráculo sibilou, entre os lábios da garota, os olhos brilhantes refletidos em suas maçãs. — Vejo o raio e o corvo numa dança de luxúria. — começou, mostrando os dentes. — Vejo a rainha humilhada pela princesa. Eu vejo... — ela estremeceu, tombando a cabeça de lado, uma mecha de cabelo fino caindo na face. — Vejo o Tártaro preso nas garras de um gato vermelho. Vejo o arqueiro sangrando entre um par. Vejo a ira da deusa em cortes profundos. Eu vejo... vejo...

Todo o seu corpo diminuto foi tomado por espasmos violentos e ela desmontou-se pelo chão, inconsciente, quando o espírito do oráculo a abandonou.

Apolo agachou-se ao lado da menina e colocou-lhe a mão delicadamente na testa, livrando-a da exaustão extrema a que tinha se submetido e guiando-a para um sono anestésico e tranquilo. Logo suas servas a levaram para recupera-se por completo entre seus próprios lençóis.

Apolo saiu do templo com queixo ereto e pulmões inflados de um certo alívio. Era o melhor entre todos os seres existentes em destrincar aqueles enigmas e nem por isso os entendia por completo. O Destino era cheio de ironias cruéis e as moiras tinham um senso de humor macabro. Mas não importava. As cartas estavam lançadas e ele estava tão preparado quanto podia.

Estava na hora de ver Dionísio.

*

— Pela milionésima e última vez... — Eros exasperou entre os dentes perfeitos. — Não!

Anteros piscou os olhos devagar, o que era o equivalente humano a "extremamente irritado".

— Devo pedir para que reconsidere essa decisão. — ele disse calmamente.

— Pelas almas, Anteros! Você é surdo? Eu não vou sair daqui! — exasperou, olhando impacientemente para as escadas. — Eu nem devia estar aqui embaixo!

Anteros se sentou, elegante e sereno, na poltrona púrpura as suas costas, como se tivesse todo tempo do mundo, cruzando as pernas delgadas por baixo da túnica cinza.

— Está sendo insensato. — a Ordem lhe disse, no seu tom de gelo liso.

Se fosse qualquer outra pessoa ali, Eros já teria tentado estrangulá-la.

As salas do Palácio do Vinho eram um caos absoluto, como todo o resto do lugar. Na decoração, não se viam a mínima tentativa de ordem ou equilíbrio e haviam estátuas, pinturas e todo tipo físico de obras artísticas se dependurando tortamente ou acumulando-se em lugares improváveis. Na mobília, não existia um único móvel que tivesse um par, e em frente a cadeira arredondada e púrpura em que Anteros aguardava numa elegância rígida, haviam um sofá de couro preto e formas retangulares, três cadeiras de tamanhos e formatos diferentes, um pufe vermelho com marcas de unha que gritavam "Floquinho", e um tapete felpudo cor de terra roxa, que parecia mais confortável do que tudo aquilo. Eros sabia, já tinha acordado nele depois de algumas noites caóticas.

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