A HUMANIDADE QUE NOS RESTA

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DESÇO AS ESCADAS. ESTOU com a mesma roupa, mas agora limpo e com o cabelo lavado. Passo por Nícolas que está sentado em um dos degraus limpando a sua pistola, provavelmente está fazendo isso para nos intimidar. Finjo que não o vejo e adentro a cozinha.

Pego duas bananas e duas barrinhas e me sento em uma das cadeiras. Observo José tomar água direto da torneira, e Katarina e Mariana no canto sussurrando sobre alguma coisa. Não quero forçar amizade ou intimidade com ninguém, quero observar para ver se consigo identificar o traidor, que logicamente não sou eu.

O clima está estranho; todos estão se entreolhando, quietos, sem falar uma palavra ou perambulando por aí. A nossa missão principal que é: achar uma saída, já foi até esquecida. Só queremos achar aquele amiguinho que vai colocar uma bala em nossas testas. Isso chega até a ser engraçado, um dia desses estava em casa me esquentando no aquecedor com o Rolf e meus avós e agora estou comendo barrinhas de cereais na cozinha de uma mansão bizarra, cercado de pessoas estranhas e com um assassino bem do meu lado. Não era bem essa história clichê que eu queria tanto viver!

Mariana me encara e eu a encaro de volta. Ela lembra minha namorada... minha ex-namorada... quer dizer, eu nem lembro o que aconteceu direito, esse vazio na minha mente me impede. Talvez ela esteja desconfiando de mim, eu deveria desconfiar dela, ou do José, ou da Katarina, Thaís, Nícolas... são tantas opções.

José coloca a casca no lixo e saí, minutos depois as duas fazem o mesmo. Estou sozinho agora. Seguro com força a arma que faz pressão contra  a minha perna, espero que ela me ajude, me proteja... espero que eu não precise usá-la.

Depois que termino de comer e beber a água da torneira com as mãos, volto para o salão de entrada. Nícolas está no mesmo lugar, José está sentado encostado na parede – perto da passagem que leva a piscina – cantarolando alguma coisa que não consigo entender. Thaís também está sentada e esconde o rosto nos joelhos, ela emite um som, de choro provavelmente, tento não focar nisso. Devo respeitar o desespero dela. Não vejo Mariana, mas os cachos ambulantes de Katarina está descendo vagarosamente os degraus e observando a todos. O fato de Mariana não estar aqui torna ela bem suspeita, mas eu não quero acreditar nisso, ela pode ter ido ao banheiro, decidido explorar mais a mansão ou algo do tipo. Mesmo com a sua personalidade forte alguma coisa dentro de mim prende a vontade de suspeitar dela.

Me sento no chão assim como os outros, estou entre dois quadrados brancos, já ia começar a pensar na vida e nas decisões que tenho que tomar quando Katarina se senta ao meu lado.

–O que vamos fazer agora? – não sei por que ela me pergunta, mas acho legal da parte dela querer saber a minha opinião...

–Eu não sei, estamos às cegas! – ...mesmo que eu não tenha uma formada. –Todo mundo está desconfiado, estão distantes, nunca vamos conseguir sair daqui desse jeito! – ela fica parada pensativa. –Onde está essa maldita saída? – deveria ser um pensamento, mas foi alto demais.

–Talvez devamos esperar outra frase aparecer na TV... – olho para a parede mórbida e vazia.

–Devemos esperar ela nós matar? – essa hipótese não pode ser ignorada, mas a próxima mensagem pode conter algo que seja o contrário do que vem informando. Preciso focar nisso, pensamento positivo, sempre. –Suspeita de alguém?

–De ninguém até o momento e você? – esse é o jogo a partir de agora.

–Nícolas, é claro! – é claro. Ele não está se ajudando se comportando dessa forma, é óbvio que é ele, mas o que devemos fazer? Matá-lo? Ele deve nos matar antes.

–Onde está sua amiga? – logo depois que as palavras saem da minha boca percebo o quão curiosas foram e tenho vergonha.

–Temos amigos aqui? Ela está lá em cima.

Um grande silêncio persiste depois disso. Esse é o resumo das grandes horas que já passei nesse lugar: medo, esperança, pavor, tristeza, horror e várias pausas silenciosas.

E o dia segue assim, cada um na sua, pouquíssimas interações. Thaís continua chorando, o estoque de comida começa a diminuir, todos passam a ir ao banheiro e quartos com mais frequência. Com o passar do tempo ninguém se encontra mais com ninguém, todos se escondem, se mantendo protegido dos outros. Talvez isso seja um grande erro.


¨¨


Estou deitado na cama, encarando o teto quando ouço o primeiro disparo e logo em seguida um segundo, terceiro, quarto... todos em sequência. Meu corpo se levanta em um pulo e corro na direção dos tiros. Encontro Nícolas e José subindo as escadas nas pressas e indo na mesma direção que eu, na direção do som. Espero que não seja o que estou pensando! Espero que não seja o que estou pensando! Espero que não seja o que estou pensando! Espero que não seja o que estou pensando! Espero que eu não encontre um cadáver sangrando no chão!

Entramos na sala de jogos escancarando a porta e encontramos Mariana com a arma em mãos fazendo vários buracos na parede, Katarina está sentada na mesa mais próxima observando a ação da amiga e com as mãos tampando os ouvidos. Uma caixa de balas está aberta e despejada no chão aos pés de Mariana, ela recarrega e atira, recarrega e atira.

–O que você está fazendo? – Nícolas questiona.

–Eu não vou ficar parada esperando que um de vocês me mate! – ela responde e dar mais dois disparos contra a parede. José tenta se aproximar dela, mas estico o braço na frente da barriga dele impedindo sua passagem.

–Nós podemos precisar dessa munição. –ele diz.

–Podemos...?! –ela se vira e olha intensamente para mim, como se pudesse ler a minha alma. –Podemos?! Não, não podemos. Isso é a única coisa mortal aqui, o traidor pode ter vantagem se tiver caixas de munições espalhadas por ai!

–Mariana, não precisa ser assim... – tento falar com ela, mas é estranho porque bem no fundo acho que eu concordo com ela.

Thaís aparece em silêncio atrás de mim, ninguém tinha ouvido seus passos pelo corredor e sua aparição repentina chama atenção de todos. Ela foi a única pessoa que não correu para ver o que estava acontecendo quando o tiroteio começou. As feridas pelo seu corpo, dos arranhões, deixam marcas expostas e ela deve estar se sentido mal por conta disso, por conta de tudo isso...

Mariana mexe os lábios como se quisesse falar algo, mas só nos dá as costas e volta a atirar sem sessar nas paredes.

–Eu só... eu só queria dar a sugestão, é... de todos dormirem juntos hoje. – Thaís fala quando Mariana cansa de castigar a parede. Ninguém responde de imediato. É uma boa questão a ser discutida, mas ninguém tinha pensando sobre ainda.

–Por quê? – Mariana pergunta.

–Seria mais seguro... se caso, você sabe... o traidor tentar algo! – Thaís encara os próprios pés.

–Ou traidora! – Nícolas não perde a chance de ficar calado, Mariana está quase rebatendo quando Katarina se levanta e impede ela.

–Eu não gostaria, ou melhor, não me sentiria segura dormindo com pessoas... – ela olha para Nícolas –...que não me passam confiança, eu não quero, vocês sabem, morrer. – essa última palavra gera impacto nos ouvintes e faz meu estômago revirar.

–Poderíamos dormi em duplas, vocês escolhem alguém que confia e ficam em um quarto, caso aconteça algo com um o outro é o culpado. – dou essa sugestão que acaba de brotar na minha cabeça e eles parecem concordar. Fico mal, por minha sugestão ter sido aceita e a de Thaís não, ela parece ter tido a melhor intenção do mundo.

–Eu durmo sozinho. – Nícolas retruca. –Assim não tem risco de acontecer nada comigo.

–Nícolas... – tento, mas ele repete o que disse e saí da sala. –Vocês vão ficar juntas?

–Sim.

–Eu, José e Thaís podemos dividir um quarto, já que Nícolas não quer dividir com ninguém.

–Tudo bem. – José e Thaís concordam.

Apreciados A Ascendência do Traidor [CONCLUÍDO]Wo Geschichten leben. Entdecke jetzt