O DIA DE AMANHÃ

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ACORDO AINDA DESORIENTADO. LEMBRO de ter desmaiado, mas não sei por quanto tempo estou inconsciente. Meu corpo está no chão, porém minhas pernas estão suspensas em cima de uma das cadeiras de madeira, não entendo muito bem o motivo. Levanto, ainda tombando, e Thaís me segura guiando-me até outra cadeira perto da parede, ela me ajuda a sentar com cuidado e logo em seguida me oferece uma barrinha de cereal.

–Coma, isso vai lhe ajudar a melhorar! – obedeço-a.

Percebo que eu não demorei muito tempo para despertar, a consciência volta aos poucos bombardeando minha cabeça. De alguma forma Thaís está ajudando o corpo inconsciente de José a se recuperar e Katarina está auxiliando-a. Ela caminha ligeiro pela sala, limpando o sangue, trocando as ataduras, deixando sempre molhado o pano que cobre a testa dele. A bala retirada está dentro de um troféu, não consigo imaginar como ela conseguiu fazer esse feito, mas acho indelicado questionar isso agora.

–Onde está Mariana? – pergunto.

–Ela está na cozinha vigiando Nícolas, você deveria ir lá! – Katarina me responde.

Demoro longos minutos para me levantar, tenho dúvidas se já estou completamente sã de novo. Por fim me levanto devagar e caminho até a porta, antes de sair esbarro numa estatua fazendo-a se quebrar em pedacinhos ao cair no chão.

Desço a escada principal da direita e ando pelas cerâmicas quadriculadas em direção a cozinha.

Encontro-a sentada na mesa menor com sua pistola sobre ela. Mariana come vagarosamente uma barrinha de cereal enquanto alisa o cabelo com as mãos. Vou até o armário mais próximo e pego um dos troféus que estamos usando como copo, em seguida encho-o de água da torneira.

–Vou levar para José. – falo e percebo que é a informação mais óbvia e desnecessária possível e fico com vergonha de ter feito isso perto dela.

Ela mantém o silêncio.

–Onde ele está? – não queria puxar assunto com ela, mas as palavras saem sem minha permissão.

–Prendi ele na dispensa. – ela responde depois de um tempo e aponta com um movimento de cabeça para a porta no final da cozinha, perto da pia.

–Como você está? – novamente uma pergunta que não recebe minha autorização.

–Não muito diferente de você! – ela me lança um rápido desvio de olhar e por alguma razão acho esse gesto encantador.

Continuo lá parado ao lado da mesa, segurando o troféu com água. Eu deveria me mexer, mas não consigo.

–Como conseguiu as algemas? – de novo.

–Você não faz ideia das coisas que eu já achei enquanto explorava essa mansão! – ela volta a olhar para mim, mas dessa vez tento lidar com isso de uma forma normal.

–DAVI?! DAVI? É VOCÊ? – Nícolas grita do outro lado da parede. –Você realmente não acredita em mim?

Não respondo.

–Eu estou sangrando... não sinto meu braço já faz algumas horas! – ele continua. –Eu nunca mataria o José, nunca! Ele era meu único amigo aqui dentro...

–Já falei que ele está vivo e que quando ele acordar e explicar o que aconteceu vamos decidir o que faremos com você, até lá você fica calado. – Mariana fala calma e paciente.

Não respondo.

–Eu preciso ir ao banheiro, estou fedendo a urina! – Nícolas choraminga.

–Você não o levou ao banheiro? – questiono. –Isso é desumano.

–Desumano é ele querer matar todos nós. Além disso ele tem um espaço enorme aí dentro.

–Davi, esse cheiro é insuportável, me leva algemado para o banheiro, dessa forma não sou ameaça para ninguém... por favor, eu imploro.

Não respondo.

Reflito.

–Eu posso levar ele enquanto você fica na retaguarda ameaçando-o com a arma. Entramos nós três dentro do banheiro e esperamos ele acabar. – respondo depois de alguns minutos.

–Se ele tentasse alguma coisa você não conseguiria matá-lo. Nícolas sair da dispensa não está em cogitação.

–Você não é a líder aqui! – outra frase que saí sem minha permissão. Ela se levanta e se coloca cara a cara comigo, dou um passo para trás.

–Não sou, mas é minha vida que está em jogo. Qualquer pessoa que quiser tirar ele daí vai ter que se acertar com isso antes! – Mariana levanta a pistola e destrava ela.

Eu deveria ter medo, mas essa sua fala desperta algo em mim, algo que eu não sei a origem. Mariana me lembra alguém e sua fala cria essa associação na minha mente. Porém eu não consigo encontrar nas minhas lembranças com quem ela se parece, mas de alguma forma eu sinto que eu amo essa pessoa... Anellie!

Eu soltaria um sorriso depois de ter visto ela na minha mente, entretanto me contenho. Iria parecer um sadomasoquista psicopata, então só encaro o chão segurando-o na garganta e fico em silencio deliciando essa sensação.

Nícolas continua gritando por mim.

–Você deveria ir agora. Talvez elas estejam precisando da água. – obedeço-a.


¨¨


O dia segue longo e sombrio. Ajudo a cobrir a mesa com lençóis e toalhas para oferecer um conforto a mais para José que se mantém desacordado a todo o momento. O clima é pesado e mórbido, é difícil saber o que se passa na cabeça de cada um ou que eles estão sentindo e manter distância novamente volta a ser o melhor plano a ser seguido.

Não sabemos quanto tempo estamos aqui dentro e algumas coisas para nós pararam de fazer sentido, como ouvir o som da chuva. Aqui dentro tudo é abafado, quase não conseguimos ouvir algum som ou ruído – que não seja dos terríveis grasnos –, mas José nunca deixou que esquecêssemos da existência da música, ele sempre estava cantarolando ou resmungando alguma coisa... seu silencio é tão violento agora.

Queria sumir nesse momento e aparecer sentado na areia molhada da praia, olhando o horizonte e aquele mar infinito, sentir o vento forte contra minha roupa e o barulho longínquo das garças. Olhar o Rolf correndo pela areia e seu pelo brilhando refletido pelo sol. Às vezes eu sinto tanta saudade e me pego pensando nele na varanda de casa me esperando voltar, por vários dias, espero do fundo do meu coração que ele não tenha desistido de mim, que ninguém tenha.

Mariana não saí em hipótese alguma da cozinha, assim como Thaís não saí em hipótese alguma do lado de José. Graças a ela o seu sangramento parou e ele não corre mais risco de vida, porém ela não parece tão confiante então se mantém sempre por perto caso haja necessidade. Katarina se isola na sala de jogos a maior parte do tempo – cada um tem sua forma de esquecer os problemas, –, e depois vai descansar em algum dos quartos. Nesse momento não faz mais sentido dormir em duplas. Como uma barrinha de cereal e levo duas, mais outro troféu com água para Thaís e me disperso dela dando um beijo em sua testa, ela estremece, mas devolve em forma de sorriso. Queria ter lhe entregado uma xícara de café e me culpo por não poder fazer isso.

Tento dormir, mas todos os pensamentos me cercam fazendo-me rolar em cima da cama. Por fim me levanto e vou atrás do objetivo que ainda temos que cumprir se quisermos sair desta maldita mansão...

Encontrar a chave.

Apreciados A Ascendência do Traidor [CONCLUÍDO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora