Capítulo 9 - Parte Cinco - A

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Aquela noite Mikey estava chateado, nervoso com algum tratamento de corticosteróides que eles o fizeram começar.

"Eu não gosto disso", ele sussurrou para Gerard, rouco e quieto. "Eu não consigo ficar acordado. Eu não consigo dormir."

Então Gerard subiu em sua cama com ele e deixou Mikey brincar com os velhos pedaços quebrados de vidro que Frank tinha coletado, correndo-­os delicadamente por sua mão e escutando eles tilintares juntos como o barulho do vento enquanto Gerard descrevia o rio e as lápides. Ele achou que fosse seguro contar à Mikey sobre a antiga casa do moinho, sobre a bolsa de viagem do Frank, porque para quem Mikey contaria? Ele guardava todos os segredos de Gerard; Gerard apenas não sabia como não contar para ele.

Mikey pareceu tão preocupado com Frank quanto Gerard, mas não teve nenhuma grande ideia sobre o que fazer sobre isso, então Gerard deixou o assunto de lado por um tempo. Mikey tinha o suficiente com que lidar, de qualquer jeito.

Em vez disso, Gerard pegou uma antiga edição de Sandman que tinha levado consigo e o leu em voz alta, fazendo todas as vozes, Doutor Destino e todo o resto. Enfermeira Ratched veio uma hora depois ou um pouco mais, para encará-­lo de forma desaprovadora e injetar algum veneno na IV de Mikey, fazendo uma rápida espirometria.

Ele tinha se obrigado a observar a coisa com a IV, porque Mikey tinha que lidar com aquilo então Gerard poderia pelo menos fazer a coisa solidária... e tentar não estremecer muito obviamente.

"É frio", Mikey disse, suspirando e alisando seu braço sobre a inserção da agulha. Gerard não iria vomitar. Ele pôs seu braço ao redor de Mikey para mostrar seu apoio. IVs eram ainda pior que agulhas, talvez ainda pior que a morte causada por agulhas e aquela coisa de arrancar o olho para fora em Fire In The Sky, o que era bastante ruim. Ele começou a folhear a revista em quadrinhos de novo, tentando se distrair da bile que teimava em subir pela sua garganta.

"Você tá cheirando estranho", Mikey lhe disse assim que a enfermeira saiu, enterrando seu rosto do ombro do irmão e meio que resfolegando no tecido. "Igual sujeira."

"Sua mãe cheira estranho!" Gerard retornou e Mikey rolou os olhos. "Eu te contei, eu caí na porra de um riacho. E pare de falar, você só vai fazer piorar, cara."

Mikey balançou sua cabeça, o rosto calmo e resignado enquanto ele respirava ruidosamente e seu esqueleto esquio chacoalhava com cada inspiração. Gerard odiava aquilo. Ele odiava a cara que Mikey fazia às vezes, como se ele tivesse perdido as esperanças, como se ele tivesse seguido em frente e aceitado aquela crueldade inevitável e irracional do universo.

Gerard sufocou sua raiva sem direção. Talvez ele fosse o retrato de Dorian Grey para Mikey, afastando toda a infelicidade e desespero que Mikey não conseguia suportar sentir ou articular com um sifão. Ele queria esmagar tudo, gritar e arrancar as cortinas do hospital até alguém parar seu acesso de raiva e consertar as coisas. Consertar Mikey. Ele se lembrou de uma memória da face de escárnio e desprezo de Ted e precisou fechar os olhos, contando até dez por um momento.

"Eu tô bem", Mikey disse, recostando-­se sobre seu irmão, a cabeça em seu ombro. Ele moveu a boca, proferindo as palavras baixinho sobre a camisa de Gerard e ele pôde sentí­-las, quentes e macias. "Eu tô bem, Gee."

"Você não está", Gerard disse humildemente, baixo o suficiente para que Mikey não pudesse escutar, e respirou fundo algumas vezes até que ele fosse capaz de esboçar um sorriso forçado em sua voz. "Sim, eu sei, Mikey. Ei, eu te disse sobre o quão incríveis o Bob e o Ray são? Te contei sobre os planos pra festinha do pijama, né? Me deixa achar meu sketchpad, eu vou te mostrar."

Ele passou o resto da hora desenhando. Ele desenhou Bob e Ray na mesa do almoço, Bob cochilando em sua mesa durante a aula de história, Ray com óculos de proteção fazendo sua cara mais estúpida enquanto ele manejava tesouras, pinças e pinos de dissecação em um sapo morto. Quando sua mãe chamou sua atenção e colocou sua cabeça no portal do quarto, ele percebeu que Mikey estava dormindo, resfolegando fracamente e tremendo as pálpebras. Gerard sempre se preocupava que Mikey pudesse sufocar enquanto dormia. Gerard deveria ficar ali para se assegurar que seu irmãozinho estava seguro, para ouvir o som de um engasgar e o retorcer inquieto dos lençóis.

Anatomy of a Fall (portuguese version)Onde histórias criam vida. Descubra agora