Capítulo 14 - Animais feridos

36 6 35
                                    


       Uma lança solar se erguia descorada contra a madrugada, ainda encoberta por nuvens de poeira gris.

    Preciso sair desse lugar. De Awen. Nidaly cambaleou bosque adentro.

    Quero ir para casa. Não havia uma.

     Poeira cinza lhe entupia as narinas, deixando zonza. A pooka, por outro lado, era um gato apressado saltando sobre as irregularidades da terra com um maço de papéis amarrados com torçal entre os dentes.

– Espere – ordenou Nidaly, a voz saindo fraca. – Me dê, tem o cheiro de Kervan!

    Do ódio dele. Tinha dor naquelas cartas.

    A pooka pareceu revirar os olhos e desapareceu nas sombras densas.

     Tentou acompanhá-la sem sucesso. Nidaly não queria parar, mas pelo inferno, Sõjobõ estava certo, a terra a arrebatava. Os joelhos tocaram o manto folhal em meio a uma crise de risos lacrimejantes.

     Um rosnado baixo a cercava e não imaginava ser a fada.

      Só havia restado suposição e folhas mortas, pó e ruínas. Metade da mansão desabara com a explosão do pó negro. Se a pooka tivesse conseguido armar os barris da adega, restaria apenas escombros na propriedade. Lidney, Elawan e quantos mais estariam sob as pedras naquele momento?

     Riu e chorou, chorou e riu. Por fim, já bebia das próprias lágrimas com a face doida. Para um tengu, eram armas tão eficazes quanto facas e alabardas, lança e azagaia, Nidaly sabia usar a todas, mas não havia ninguém ali para lhe justificar a prática. No fim, inúteis. Como tudo que fizera até ali.

      O cão que os seguia se aproximou com não mais barulho do que teria feito uma cobra. A tengu levou a mão a uma pedra cheia de musgo verde e púrpura sem muita pressa. De joelhos, era menor que o canino, este devia ser o maior que já vira na vida. Espuma vermelha se derramava de sua boca. O wyvern lhe fizera um bom estrago. A carne esfacelada ocupava o lugar do olho onde a garra lhe abrira a cara. Ele lambia o que podia para limpar o ferimento. A única conta boa era castanha esverdeada e parecia embaçada enquanto o efeito do sangue do wyvern se dissipava.

    Tentou se aproximar reconhecendo a invasora aos seus domínios na noite passada, quando foi ao canil e soltou os cães. Mas caiu a meio metro dela.

– Foi por sua causa que tudo deu errado, sabia? – Não tinha certeza se falava com o animal ou consigo. Ele rosnou um protesto quando a tengu se aproximou com a pedra em mãos.

     Uma causa perdida. Deu um sorriso amargo. Ele estava protegendo a matilha, e seu lar, contudo, falhou miseravelmente. Agora está sofrendo.

– Às vezes é melhor se render. Se tivesse desistido... se tivesse... deixado seguir seu curso e desistido...

      A respiração de ambos era pesada. O que seu mestre faria agora? Não tinha mais ordens, ou propósito, constatou perdendo a expressão na face. Sõjobõ odiava inutilidades. A dor que o cão exibia era uma.

     Segurou a cabeça dele com uma mão. Pelos macios em contraste com a aspereza da pedra.

     O animal exibia os dentes, assustado, e não hesitou em mordê-la. A tengu não soltou conforme ele esperava. Planos são inúteis nesse rio, todos haviam dado errado, quantos não se afogaram na frustração.

     Um brilho azul irrompeu na mata em meio às brumas pálidas e desapareceu tão rápido quanto surgiu. Estreitou os olhos. Nidaly não se iludiria de novo com fogos-fátuo. Sombras e brumas eram cerradas pelo dia. A noite Amat se encerrava, com menos alegria do que deveria.

    Suspirou.

– Me perdoa.

     Com a cabeça do animal em seu colo, apertou a pedra contra a mão. O mastim grunhiu, fechando o único olho que lhe restava. Era uma fera bonita, mortal e ímpar. Tirando o musgo com o dedo, Nidaly o amassou e colocou no ferimento do cão, que quando percebeu, lhe lambeu os dedos, no que supôs, ser surpresa.

      Brisa frigida agitou os galhos fazendo farfalhar as folhas de outono.

      Uma folha ao vento. Sorriu. Vento; sem lar, sem fronteiras, mesmo parado nunca se demorava no mesmo lugar. O mesmo sopro lhe disse que mais cães se aproximavam.

      A dor mordeu suas costas quando voltou a abrir as asas. Foi obrigada a admitir que aquele ferimento lhe impediria de voar por semanas, talvez mais. Os animais já avançavam contra suas pernas quando enfim se empoleirou em um carvalho frondoso perdido em meio às macieiras.

     Cerca de oitos cães surgiram e depois de encaradas ameaçadoras a tengu, foram verificar seu líder caído. Farejaram e lamberam seus ferimentos. As copas das árvores se agitavam sem brisa ou propósito e os cães formaram uma roseta negra em torno do ferido. Aquecendo e protegendo uns aos outros.

      Como uma família. Percebeu com tristeza.

      Lidney estava errada. Sabia o que precisava. Conhecera-os, os Kanht, o que uma família deveria ser. Unida, leal e verdadeira. Mas não fazia parte dela. No fim, Kervan e Lidney fizeram como seus pais, se foram. Os filhos deles, porém, já eram homens feitos. Bem diferente dela e Delilah. Lembrava da mãe, embora não quisesse fazê-lo. Tinha um jeito distante que às vezes via em Lidney, de sorriso fácil e pensamento rápido. Se fora igualmente assim, uma noite, sem mais explicações. Traição, o rei dissera. A tengu havia fugido da sua punição e por isso as filhas pagaram em seu lugar.

     As contas negras dançaram em seus dedos, a pena suja e puída ainda lá.

     Delilah. A última pena dela.

      Agora Lidney e Kervan também se foram. Com tanto arrependimento e amargor que escondiam atrás de sorrisos. Dois mentirosos. Disseram que voltariam, que trariam justiça com verdade, mas só restara escombros e silêncio após a balbúrdia. Mentirosos, Lidney prometera que nada a impediria de fazer justiça, que não havia nada que a fizesse parar. Ainda assim, quando Elawan a encontrou e sua morte estava marcada, ela não o fez. Teria reduzido ele a cinzas ali, mas não o fez.

      Nidaly se arrependia de ter errado o golpe que arrancaria a cabeça da branah, mas até isso se desvaneceu. O carvalho bebeu seu pranto como beberia a chuva e as lágrimas secaram depressa a deixando oca.

     O sol despertava tímido quando Nidaly adormeceu.

Entre Damas e EspadasWhere stories live. Discover now