Capítulo 17: Castelos e ruinas

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         Um pavão ainda era assim chamado depois de perder suas plumas? Um corcel era sacrificado depois de ter sua pata perdida. Tigres só o eram por suas listras. E agora, quem era ela?

       Sob o véu cinzento, seus olhos estavam inchados, vermelhos. Poderia amaldiçoar Tuama. O que ele viu dançar em seus olhos era a prova do que não reconhecia no espelho, ela própria. O vestido marfim estava esfarrapado onde puxara os fios. Frio. Queria sentir os dedos afundarem no próprio cabelo quente. O peso dele pendia em suas costas, recobrindo seus ombros, mas era uma sensação fantasma. Sorel d'Luryen não estava ali.

       Era um oco que encarava.

         A fita rosada de seus lábios se contorcia, trêmulos. No espelho de prata, era uma criança emburrada e também uma velha arrasada. Os longos dedos correram pelo corpo deixando marcas na pele de alabastro. Não. Não era Sorel d'Luryen. Nunca fora bonita, era bem verdade. Finos olhos castanhos meio separados; a boca, uma rosada fita sem carne. Mesmo sob o tecido, ossos destoavam em sua clavícula. Uma figura desajeitada. Lânguida.

       O espelho rodou quando o chutou com o pé. Havia coisa pior que não reconhecer a si mesma? O pensamento fez seu rosto ficar quente. Os lábios tremeram de raiva.

       Quando Gal'win chegasse, esfolaria a tengu, se pedisse, o faria. Queria que ela também não se reconhecesse. Embora duvidasse que a vira-lata soubesse o que era um espelho. Que Cernudos a foda no outro mundo. A quero morta. Ela, Lidney, Kervan. Mas também Kara e Inari.

         Não podem. Não podem me tirar...  Não podem me tirar... mas nem os cabelos da cabeça lhe haviam sobrado. Não havia nada que não pudesse ser tirado dela? Nem mesmo sua habilidade branah se fazia eficiente nos últimos tempos.

A porta se abriu sem aviso e Marbla se atirou dentro do seu quarto. Sim, aquela casa era sua... mas prédios também ruíam. Coillemori podia provar. A humana estava vermelha, os olhos azuis, uma mina de lágrimas. Trêmula, era incapaz de falar de maneira coerente. Sorel se levantou de sobressalto, com a menção de Lohkar no desespero dela.

Era noite cerrada além da janela. A noite do terceiro dia.

       No quarto que Lohkar ocupava, o macho se debatia em seu sono febril. Marbla chorava copiosamente quando lhe contou o estado em que o encontraram. Após a discussão com Elawan, o capitão havia saído aturdido com sua lança em direção ao bosque das macieiras, ajudar Inari na caça, acreditavam, mas o sol caiu e a amazona alada voltou sem que o feérico ruivo tivesse retornado.

— Afogado, senhora — A moça conseguiu dizer. — Largado no baixio em meio a lama e íris do pântano.

        Ela estava enganada, mas não de tudo. Lohkar foi levado para os aposentos às pressas e com descrição. Embora encharcado, não foi a água que o deixara inconsciente, Sorel descobriu tão logo entrou no quarto. A camisa de linho do capitão fora rasgada para exibir um nada modesto ferimento, circundado por carne enegrecida. No braseiro, ervas calmantes ardiam para aplacar as dores e odores. Não precisava de curandeiros para saber que aquela era a marca de uma flecha de teixo.

        Marbla tinha um choro miado atrás de si e a branah logo percebeu que a criada fora até ela tendo em vista a permissão para ver o capitão. Sorel suspirou antes de mandá-la embora com uma única palavra. Maldito seja, o braço da lança está perdido. Um pouco mais e sua vida também. Apertou os dedos na mão, dessa vez, abrindo meias-luas na palma. A cama cheirava a gangrena e lama onde uma mandíbula havia aberto a carne.

— Lírio — murmurou o feérico febril. — Lírio d'ouro?

       As narinas de Sorel se dilataram, mas não sentiu o ar em seu peito.

Entre Damas e EspadasWhere stories live. Discover now