Capítulo 2 Faca cega

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       Estava ali como um observador silencioso, um fantasma deslocado.

       Era um quadro lívido, do qual Sorel fazia pouco caso. Preso no corredor banhado pela prata do luar. Uma imagem complicada, cuja as cores mais vívidas já haviam a muito desbotado com o sol que adentrava pela janela a sua frente. A feérica se deteve a encará-lo de esguelha. Se não fosse pelo pintor, o atiraria pela janela. Uma pintura quase angustiante: uma floresta antiga de natureza morta, consumida pelas chamas já extintas, agora tão cinza. Estava ali, em contrapartida, se perdendo em meio as exuberantes pinturas feitas por mãos feéricas, em sua moldura dourada.

      Um canto da boca da fêmea se torceu e ela seguiu em passos firmes e largos, o som de seus saltos ecoando pelo corredor de mármore. Estava desembaraçando a longa cascata que era seu cabelo, quando o viu passar e então deixou o serviço pela metade, já sabendo para onde ia o senhor daquela mansão. Algo no peito de Sorel se contorcia oco, e o fato de Gal'win dizer que era coisa da sua cabeça só confirmava sua crença. Predadores sentem o cheiro de sangue, repetia eventualmente para si. Mas havia alguém que a estava evitando em especial naquele dia, e não apenas a ela.

      Caminhou por dez minutos pelo jardim enluarado, o vestido verde pálido ondulando na noite, na direção onde as ciprestes se erguiam vigilantes com suas folhas agulhadas, diante das portas duplas de carvalho. O canil de Elawan era quase um palacete. Sozinho era equivalente a um terço da mansão, mas nada dele lembrava o mármore branco de sua morada. Era uma construção de rocha sólida que se estendia por quatro níveis abaixo do solo e também constituíam os "aposentos" para prisioneiros, com uma simplicidade característica de seu construtor.

      Sorel parou diante das portas.

      Suas narinas se dilataram quando segurou a fechadura de bronze, o metal tinha o toque de uma serpente. Sua respiração se tornou visível. As pontas esfoladas de seus dedos protestaram quando imprimiu força contra a maçaneta que se abriu num murmúrio. O vento frio dançou em suas vestes; não sabia dizer se ele entrara no local ou havia sido libertado. Luz prata invadiu a escuridão do canil e duas dúzias de olhos se acenderam em suas baias, mas os cães não emitiram um único som.

     Um contorno masculino se fez visível.

    As baias se estendiam em fileiras dos lados do corredor escuro e quanto mais olhava, crescia em Sorel a certeza que detestava aquele lugar. No fim do vão, sentado no chão diante da porta que dava para a segunda ala, estava ele.

    Era para lá que ia o Lorde do Fogo Encarnado quando precisava pensar, quando estava prestes a lutar, a um passo de destruir.

    Sorel o observou, taciturna.

– O que aconteceu? – inquiriu.

– A não ser que a cidade esteja pegando fogo, não fui eu – falou com uma ira fria e humor disfarçado. Ela notou um gigantesco animal negro em seus braços.

     Os cães de Elawan eram conhecidos em toda Awen e além dela, como a melhor matilha de caçadores que já existiu. Para comprar um filhote já fora oferecido a fortuna que empobreceria um lorde menor, tal oferta Elawan recusara de imediato. Não havia presa que não capturassem, pois uma vez lhes dado um alvo, não havia chance de desistirem sem tê-lo capturado, a não ser que seu mestre os parasse. Eram negros como carvão, maiores que lobos – muito embora lembrassem estes – e silenciosos como o vento estival, não sendo incomum que as presas sequer soubessem o que se fechou contra sua garganta. Elawan os tinha em alta conta e os animais a ele, pois somente ao Lorde do Fogo Encarnado eles obedeciam. Sorel não podia dizer que gostava deles, pois era contra sua natureza nutrir apreço pelo que não tinha a ela.

Entre Damas e EspadasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora