Capítulo 6: Urzais (Parte 2)

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         Foi há duas estações.

        A tarde estival, demasiada ocre para o gosto de Nidaly, tingia os picos montanhosos de dourado e o lago de um profundo esmeralda, enquanto desvanecia em um laranja ardente. Pelo menos fora assim que Lidney tecera aquele poente do vale. A humana parecia temer que toda a cordilheira e talvez parte do mundo desaparecesse caso ela não terminasse a obra antes do cair da noite. Ela de fato conseguiu e, bordou cada detalhe, do musgo ao azevinho, até mesmo Nidaly fazendo parada de mão no parapeito da ponte – essa era a parte que a tengu menos gostava. Naquela tarde, usava calça larga e blusa com lindos bordados marrons sobre o tecido amarelo claro que certamente teria sido uma calamidade aos olhos da corte de Awen, segundo Lidney, com seus inúmeros furos e remendos. "Sõjobõ não se importa que a protetora de seu príncipe se vista como alguém retornando da guerra?", perguntara o marido desta na ocasião. Sim, fora a resposta de Nidaly, mas não o bastante. Ela não conseguia manter uma roupa íntegra por muito tempo mesmo.

      Salve pela tapeçaria que repousava na parede do solar nas montanhas, com traços rústicos ainda que precisos, a memória se desbotava na mente da tengu. Algo em si parecia querer evitá-la.

– Você vai se machucar, menina – protestou Lidney com certo ar de preocupação.

    Com o mundo de ponta cabeça, Nidaly viu a humana lhe acenar da margem.

    Disso se lembrava. Fez bico para ela na ocasião.

– Menina?! Sou mais velha que você – retorquiu Nidaly e isso era bem verdade.

    Em contrapartida, a tengu aparentava por volta de dezenove anos humanos, enquanto os primeiros fios brancos que se mesclavam na cascata loira de Lidney estavam soltos naquela tarde.

– Ainda tenho mais juízo, não saio voando em tempestades. O que está fazendo aí?

     A tengu retraiu os dedos diante da censura da mulher, esperaria algo parecido da irmã, mas a preocupação de Lidney era demasiado sincera para que Nidaly se enraivecesse. Ainda assim, seu rosto estava vermelho. Contraiu os dedos – que já não sentia – na madeira, numa sensação ilusória de segurança.

– Apreciando a paisagem ­– disse com certo esforço para lhe sair as palavras.

    O mundo de ponta cabeça já estava escurecendo em sua visão.

    Via seu rosto no reflexo da água, parecia distorcido e atarracado daquele ângulo. Fez careta e tudo piorou. Ante o riso, seus braços vacilaram na posição e as pernas desamparadas no ar, ameaçaram cair na direção do lago. Praguejando em silêncio, agarrou-se a madeira e o vale voltou a sua visão natural, embora seus pés não estivessem fincados no chão.

– Lidney, sua língua de trapo – berrou a tengu de onde estava, agarrada a base da ponte. – Que Cernudos lhe leve.

– Deixa, Lidney – interveio o homem com seu ar sereno do seu lugar a sombra do salgueiro-chorão. – afinal, ela rompe tormentas. – Ele adorava essa história. "Cúmulo da tolice", Delilah dizia, mas eles adoravam. O que era piada no começo logo se tornou o apelido caro que humanos lhe deram. Por sobre o ombro, Nidaly decifrou através da fumaça do cachimbo dele um sorriso levemente entorpecido pelas ervas. – E os gatos sempre caem de pé.

      Nidaly sorriu em agradecimento começando a ficar tonta pela quebra brusca da posição. Só você mesmo. Não sei se é elogio ou uma piada. Kervan alargou o gesto lhe rendendo pregas nos olhos até que uma gargalhada cavernosa pudesse ser ouvida.

– Nem Ninive pode controlar você, que os Espíritos lhe protejam Rompe-tormentas – brincou com sinceridade.

     Kervan era um homem que tinha muito para dizer e mais ainda para esconder. O grisalho começava a surgir no nanquim de seus cabelos e seus olhos estreitos pareciam sempre gentis, mas capazes de esconder não apenas dor, como também fúria. Depois de dez anos, Nidaly havia desistido de tentar entendê-lo, também de remexer em suas feridas. Era um homem demasiado magro que em certas ocasiões era incapaz de manter comida no estômago, ficando semanas a fio trancado num quarto para sair depois com um falso sorriso no rosto que usava para não preocupar os filhos, Nidaly achava, ou, para enganar a si mesmo.

Entre Damas e EspadasOnde histórias criam vida. Descubra agora