Capítulo 15 - Mortalha Pálida

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        A flecha seguiu o trajeto das estrelas cadentes, ardendo em chamas.

       Não pediria perdão àqueles mortos.

        Era a maior pira funerária que o rio já vira naquele trecho, ao menos, Sorel supunha ser. Preferia que tivessem sido enterrados sob os montes, mas para cavá-los teria de mandar um grande grupo, quilômetros terra adentro, onde o solo era mais firme para não virar um lamaçal. Isso, porém, os deixaria expostos a outro ataque ou pior, a demora. E a carne se decompondo atrairia os onis e outras criaturas.

       Queime!

        O fogo dançou na barca fúnebre, os tons pálidos daquela manhã engolidos pela vermelhidão. O terceiro amanhecer, pensou sentindo o frio penetrar suas vestes brancas, esta noite Cernudos cobrará sua dívida. A madeira estalava e logo estaria no fundo do rio. Talvez lá encontrem melhor descanso, um caminho para casa. Muitos mais ainda terei de ver morrer, não havia lágrimas para aqueles que foram. Mas você não, Elawan. Você não. Não lhe ofereceria despedida. Deuses, não havia agradecido, nunca havia retribuído aquela... gentileza, décadas atrás.

       A grande pira disputava com o sol quem traria a aurora mais carmesim e, por fim, a estrela da manhã emergiu vitoriosa. O barco em chamas se perdeu na curva do rio e nas brumas da alvorada. Você não, Elawan. Não quando estavam tão perto. Podia ver aonde levava aquela estrada, mas não podia trilha-lá sozinha.

       Sob o véu, passou a mão nos cabelos, mas eles não pendiam em suas costas.

       Sem alternativa, enfiou o dedo na boca e começou a rasgar a carne em torno das unhas até os dentes encontrarem sangue.

        Não sabia quando havia deixado as ameias de onde disparara a flecha, caminhando em direção... para onde mesmo? Não tinha ideia, mas seus pés faziam o trabalho com dignidade, passando por entre o povo de luto. Era opressivo. O dia e a noite anterior foram passados recolhendo os corpos. Duzentos e dois; tantos mais feridos. Liffey parecia entorpecida. Alguns haviam sido atacados pelos cães de Elawan, enlouquecidos com o sangue de wyvern; muitos mais foram pisoteados ou lançados ao rio na confusão que se seguiu.

       E houve aqueles soterrados pela explosão na mansão.

        O prédio central de Coillemori havia ruído aos caprichos de Lidney; ninguém na câmara de audiências ou na arcada dos senhores escapara ileso. A maior parte das vítimas era da criadagem, mas dos quinze senhores que a cidade recebia, doze deles estavam no julgamento. Humanos e feéricos sucumbiram sem distinção e dez deles já encontravam seus corpos seguindo a estrada da Folha ou rio Negro rumo as a sede de suas casas. As Sacerdotisas de Cernudos garantiram isso. 

        A guarda dos vassalos de Elawan começaram a chegar na tarde após a explosão, quando a anarquia ainda estava instaurada nas ruas e Sorel nada podia fazer para deter. Não era um exército, mas mil homens de armas das três casas vassalas mais próximas podiam ser uma dor de cabeça dentro da cidade. Esses nobres pequenos, em especial lady Sarelle, se apropriaram do caos e delegaram à guarnição que trouxeram a tarefa de conter o povo da cidade, recolher corpos e Lohkar cuidou de arrumar espaço para os feridos, enquanto Sorel manteve a própria guarda na busca por sobreviventes no que restara da câmara de audiências. Não precisava ser quem era para saber que não foi lealdade que mobilizou os nobres a vir tão depressa; cada um deles queria se certificar com os próprios olhos que seu senhor havia caído. 

        Deu por si as portas do quarto dele,  no prédio sul de Coillemori, o menos avariado. Muitas velas oscilaram nas arandelas quando a branah entrou. Ainda assim, a escuridão pairava no local, bem como aquele maldito cheiro, podre e pesado.

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