Prólogo

321 48 168
                                    

     "Do pó às cinzas." 

        É mais difícil imaginar o que vem depois delas. Outrora acreditava na força interminável de Niníve e suas águas do destino; doente e cansado, encolhido contra a pedra fria, é incontestável o poder das correntes, mas elas estão nas mãos dos homens. 

        Na pequena janela na qual me suspendo não posso ver muito além de uma manhã lúgubre. Este provavelmente será um relato de publicação póstuma e a impotência em que me vejo agora é a mesma na qual me encontrava nas ruínas do antigo reinado. Quando loucos afoitos tomam medidas impensadas, sua família sofre, quando o louco é um rei, seu reino sangra. Nos tempos de minha juventude nada fiz para desafiar a tirania profana que tomava conta de Awen, quando o rei Galloi se lançou em guerra contra outra potência. Foi meu antigo papel de espectador que me colocou neste impasse. Quando dele tentei me desvincular, foi cobrado um alto preço, pois na época não tinha ideia que a liberdade e a verdade fossem tão caras. 

       Chamas dançam quando olho para dentro desta prisão e temo, cada batida, passo, sussurro, que podem ser o soar da morte. No corredor os archotes se agitam. Será que sentiram falta de ver as flores crescerem como eu sinto agora? Eles gostavam de orquídeas, talvez amarílis.  

   Elas também viraram cinzas. 

       Mesmo depois de anos, os gritos da minha esposa ainda perpassam meus pesadelos. Os mais novos se encolhiam contra suas saias e o bebê pequeno chorava em seus braços quando cheguei ao pórtico; a criatura que vi era um ser pálido escamoso, dois metros e uma boca cheia de dentes que rasgavam com eficiência, meu filho. Arlan tinha um olhar determinado da mãe, escuros e que sorriam com facilidade, mas naquele dia cravavam a porta baços e sem vida. Suas vísceras se derramavam do abdômen aberto, tingindo as flores de sangue. Eu devo ter fechado os olhos, mas foi por apenas um instante. Meu mundo parou. Quando tornei a abri-los com gritos rasgados a me cortar, uma pequena massa ensanguentada estava sob os pés do homem que comandava as horrendas criaturas. Melhor dizendo, um monstro.

     Avrian não estava mais junto a minha esposa.

    Minha garotinha de pés ligeiros não correu tão rápido. 

     Foi graças as mãos tremulas do meu terceiro filho que voltei para o mundo, mas ele chorava com a mente distante, manchado de sangue diante dos meus olhos. Se foi por clemência ou maldição que fui poupado, aquelas criaturas levaram dois dos meus filhos e estou condenado a nunca esquecer.

    Havia um homem controlando o oni.

   Aparência igualmente pálida e doentia, que olhava com desprezo por cima do desinteresse; ainda assim, parecia humano. Aquele era a arma, a besta que o mestre enviou, que tentou calar-me.

    Eu era o alvo, eu e apenas eu. Mas assim como o sol, a verdade não pode ser ocultada por muito tempo.

    Já devia saber do que Ele era capaz. Matar crianças inocentes na frente de sua mãe, o Lorde do Fogo Encarnado é capaz; havia visto em primeira mão. Elawan... Fico recapitulando seus atos. Sua mão não manipulou apenas a morte dos meus filhos, afinal.

     Águas passadas manchadas de sangue.

      "O rei Gallloi havia iniciado uma invasão ao país vizinho, Vineheim, com Kara no comando do exército. Awen passava fome para custear as tropas e logo a situação ficou complicada com a crescente manifestação popular.

       O irmão de Kara foi declarado traidor, embora, na época, ninguém soubesse bem o motivo. A general Kara veio em seu auxílio, acompanhada das tropas que a seguiam. Quando rei descobriu o ocorrido a chamou de traidora e mandou que executassem a família da general. O irmão mais velho de Kara, porém, escapou em direção as Montanhas Nebulosas acreditando que não seria perseguido, contudo, os cães de Elawan não conhecem fronteiras e o príncipe Cardiff estava em seu encalço.

      Chegando às Montanhas Nebulosas o irmão da general é capturado e morto. Neste ponto as histórias se confundem. Uns dizem que os batedores tengus foram os responsáveis pela morte do irmão da futura rainha, embora rei deles negue; já outros contam que o príncipe Cardiff num ataque de fúria o matou. Mas o destino do até então, nobre príncipe feérico, não podia ser mais sórdido. Porque, ainda que a história contada seja a de que os guerreiros alados tenham assassinado o príncipe, a verdade é que os tengus não tiveram a chance. Fatos não narrados lhes trago agora: de como Elawan usou seus cães para matar o príncipe Cardiff e sua magia de chamas para encurralar todos os seus homens nas montanhas, permitindo que Kara chegasse e encontrasse o palácio real desprotegido, e mata-los tão a vitória da usurpadora estivesse concreta. Um traidor, que se voltou contra a mão que o alimentava, que matou sem piedade os companheiros de armas, o mesmo fez com um amigo, com seu príncipe. Essa foi uma das muitas partes ocultadas da História.

     Chega dado momento em que estórias e a verdade conversam e elas concordam, Elawan matou o príncipe Cardiff e seus homens. Eu estava lá, foi a muitas estações atrás... mas essa não é toda a verdade, oh, nobre Lorde do Fogo Encarnado, a verdade lhe transformaria em cinzas."

Manifesto de Kervan, Tomo I 

...  

    Nem sempre a água é capaz de extinguir chamas, mas o vento sempre vai abalá-las, a brisa matinal trazia o aroma de flores, mesmo naquela cela pútrida.  

Kervan Kanht 

Entre Damas e EspadasWhere stories live. Discover now