Atestado de óbito

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Ei-la, a mais nefasta das minhas mentiras: a juventude de vinte e poucos anos, que sustento numa carcaça muito moça e faço crer ser menina de tudo, pois não me foram concedidas as rugas que mereço.

Eu sou centenária, uma velha azeda e amargurada. Morri ao menos uma dúzia de vezes, sem velório ou missa de sétimo dia. Puseram-me para jazer em valas de terrenos sem nome, em terras governadas por abutres famintos, cujos bicos afiados rasgaram o pedaço de carne inerte que outrora fora meu cadáver.

Pois sequer fui legítimo cadáver, já que esta condição compete aos seres vivos já findados. E quando é que fui viva, afinal?

Sejamos francos - eu não passo de uma anomalia.

Eis que levanto da cova, a boca cheia de larvas (pois descortesias ainda tenho a dizer) e as córneas devoradas (pois não vale a pena enxergar). Quisera eu ter sido vítima dos mesmos vermes inocentes que engoliram nossos antepassados.

Mas, não! Fui banquete de parasitas de outra ordem: vermes maiores, fofoqueiros, farsantes, que roubam bolsas e relógios, que puxam o gatilho em pais de família, que procriam em banheiro público e que escondem seu mau-caratismo na risca de giz de um terno Gucci.

E, cá entre nós: estou estragada pelos dissabores de excessivos e cansativos e insuportáveis aniversários. Apenas me deixem! O tempo há de ser meu amigo e me fará apodrecer.

E quando este dia chegar, não quero ninguém sobre o meu túmulo dizendo que "poderia ter sido diferente", que "ela era tão jovem", que "tinha tudo na vida"... "que pena".

 "que pena"

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Todas as Sereias são PerversasWhere stories live. Discover now