IV: Os Santos

21 10 9
                                    

A mão rígida estalava em sua perna. Tinha que controlar o choro para não apanhar mais. Ele puxava-a pelo rosto dizendo o quanto era uma péssima mãe.  O maxilar tremia de medo e de dor. As lágrimas desciam silenciosamente enquanto se encolhia para evitar o alcance das pancadas. Ele buscava o cinto e se preparava para acertá-la. 

O grito do comboio fez Eva despertar de seus devaneios. Via sua neta sentada à sua frente, e ela se levantava graciosamente. Sua neta tinha vindo todo o caminho olhando a paisagem, ansiosa. 

Baltazar foi até elas e ajudou a viúva a se levantar, embora não precisasse. Era luxo ter um capataz sempre atrás. 

— Se comporte. — Eva ordenou ao ver a animação que sua menina passava pelo olhar ao ver a neta do intendente na passarela da estação.

Exatamente os conselhos que sua filha não escutou em dado momento. Sua filha tão doce havia sido levada pela sedução da modernidade e lhe deixou sua neta. Por isso era tão atenta com Gertrudes, não queria sofrer com ela o desespero que passou com sua filha. Graças aos Deuses Júlio havia ido antes que Gertrudes pudesse lhe causar algum problema.

Júlio um dia havia sido como sua proibida de recordar filha: querido e doce. Contudo o tempo o mudou, de ranzinza passou a diversos extremos. Piorou drasticamente quando sua filha resolveu pensar por si mesma. Não permitiria que a história se repetisse. Eva pensou que se tentasse equilibrar os delírios da juventude pela seriedade da decência, nada voltaria a ser terrível como um dia havia sido.

Tudo foi tão terrível e permanente, um calvário de quinze anos que deixou Eva devastada interiormente a ponto de não poder fechar os olhos sem pensar em como assegurar o que tinha e se livrar do que lhe fazia dano.

Ficar viúva a permitiu respirar sem medo. E estando longe de Magris foi um alívio completo, além de promover um ano de muitas mudanças.

A neta sempre tão obediente concordou com a cabeça e esperou sua avó descer primeiro.

— Finalmente estou livre. — murmurou para si mesma e passou a mão pelo rosto, suando pelos calores da menopausa. 

Tinha a senhora Santos os cabelos cortados como ditava a moda da época, na altura do queixo, diferente de vinte anos atrás quando a exigência da sociedade eram os longos cabelos. A pele da matriarca era clara como alabastro, completamente o contrário da cor de pele de seu falecido. Sua filha havia nascido com a pele escura, porém logo foi clareando, se tornando uma amorosa menina de pele bronzeada e longos cabelos negros.

Gertrudes corria para abraçar a amiga Josefina. Nicoleta sorriu levemente e cumprimentou a viúva desejando os pêsames novamente. 

Era costume magreense ficar de luto um ano fechado em casa ou então em um templo restrito a um dos onze Deuses, se tratando de mulheres, claro que a parte masculina da sociedade não podia perder tempo chorando por alguém morto. Eva escolheu ir a um templo dedicado à Virgem em Magix. Sem absolutamente nenhum contacto com o exterior. Sinceramente, Eva não tinha sentido falta de ninguém, mas Gertrudes tinha. 

Josefina e Gertrudes tinham nascido com dois dias de diferença, dias cruciais para os signos, porém não para elas que sempre comemoravam em conjunto. Embora as complicações do nascimento da herdeira Santos. 

— Menos sorriso, Gertrudes. — a avó chamava a atenção. 

— Sim, senhora. — se afastou da amiga e fechou o sorriso, contudo continuava sorrindo com os olhos. 

O grupo de mulheres foi caminhando até à casa dos Santos. Eram escoltadas por Baltazar e Cosme. 

Contavam como tinha sido o período de luto pela morte do chefe da família. Júlio era o falecido, dono dos bancos da cidade e investidor na bolsa em Magix. Um dos poucos focos de modernidade precoce desde décadas atrás e agora era confiado à viúva.

A senhora Santos usou o tempo de luto para tomar o lugar diante de todos os postos do banco, formando-se em tudo o que se referia a números e à bolsa magixiliana, investindo mais e mais. Não era mais uma esposa inocente e tonta, era a mulher mais rica da cidade e muito melhor: emancipada.

As mulheres pararam à frente do portão da casa e encontraram Silvana e Luciana. As conhecidas da cidade por serem solteironas encalhadas traziam dois bolos e sorriam falsamente. A casa Santos é bem grande, desenhada para uma grande família, Eva se provou incompetente para dar a Júlio um herdeiro homem, ou até outras filhas. Ele a culpou por isso também. No início era compreensível, ela também não entendia porque não conseguia ter mais filhos.

Todavia, como tudo que machuca e é aceitável, uma hora começa a deixar marcas de verdade. O que lhe doía mais era ouvir repetidamente que era uma má mãe quando ela havia dado a sua amada filha tudo o que podia. E então ela não tinha nada senão decepção e uma inocente neta.

— É muito bom ver a senhora novamente. — Luciana disse. 

— Imagino que sim. — desdenhou educadamente. 

Luciana estava prestes a dizer alguma coisa quando um som de tiro as assustou. Duvidaram que fosse tiro, então um segundo confirmou. Baltazar e Cosme apressaram as damas para dentro da casa e trancaram tudo.

Gertrudes puxou Josefina para seu quarto e as duas se colocaram à janela. Viam a rua deserta e se olharam, com saudades e um sorriso confuso. Não sabiam se comemorar por estarem juntas ou lamentarem o que quer que estivesse acontecendo na cidade de Magris.

— O que será? — a neta do intendente olhou a amiga, com curiosidade. 

— Eu senti muito a sua falta. — sorriu sem mostrar os dentes, Gertrudes era sempre atenciosa e amável. 

— Eu senti mais. — a abraçou e rolaram pelo chão do quarto. — Como foi lá? 

— Fastidioso sem você. — olhava o teto. — Mas confesso que vi coisas mais que incríveis. 

— O que você viu? — deitou de barriga para baixo e a olhou no fundo dos olhos coloridos.

Gertrudes tinha os cabelos castanhos como ébano, cortados na altura do pescoço, lisos como seda. Sua pele era quente, cor de canela. Tinha altura conveniente para seus dezesseis anos e era esbelta, seus traços do rosto eram delicados como se tivessem sido talhados para sempre ser uma criança. Ademais das várias coisas que não se saibam explicar acerca da família Santos, tampouco se sabia porque a neta do senhor Júlio Santos tinha os olhos coloridos. Um olho violeta e o outro castanho. Como se fosse ela uma parte de dois. Depois de dezesseis anos, poucos lembravam que Gertrudes não era filha de Eva, e tanto Eva quanto Júlio tinham os olhos escuros.

— Magia. — sussurrou olhando-a intensamente. 

— Mentira! — exclamou chocada, cobrindo a boca.

— As sacerdotisas fazem. — segredou. 

— Se é sobre magia, temos de falar sobre o concorrente do meu avô. Eu vou te contar tudo o que mudou nesta cidade no último ano. 

Eva apareceu à porta e as duas correram para se colocarem de pé, como se fossem parte do exército.

Eva apareceu à porta e as duas correram para se colocarem de pé, como se fossem parte do exército

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.


***
Eu sei que tá começando, mas não esqueçam de votar rs

Magris A história de uma cidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora