Carnis Levale - 1

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Não querer, não significa que não vai acontecer.
(Os olhos de Julia)


Tudo começou em Junho, no Dia dos Namorados.

E, sim, eu sei que isso soa totalmente absurdo, levando em conta que ainda faltava quase um ano para o início do Carnaval, mas o que eu posso dizer? Meus amigos são pessoas prevenidas. Na verdade, é até legal que alguém em minha vida consiga organizar planos com tamanha antecedência, uma vez que eu mesma sou um verdadeiro desastre com planos em geral...

Mas Junho, sério? A quem eu quero enganar?

Eles são totalmente loucos.

No entanto, a óbvia loucura dos meus companheiros não torna essa declaração menos verídica. Porque tudo realmente começou em Junho, no Dia dos Namorados. O que, se você parar bem para pensar, é bastante apropriado, uma vez que esse feriado consegue ser quase tão desagradável quanto o Carnaval.

- Vamos lá, Shelley. - minha melhor amiga, Flora, suplicou - Você já nos obrigou a passar o Dia nos Namorados nos afogando em chocolate, o mínimo que você pode fazer é viajar conosco no Carnaval.

Revirei os olhos, irritada.

- Eu não obriguei ninguém a coisa alguma. - reclamei, ultrajada - Tudo o que eu disse foi "Vamos ao Pub do Brownie?". Não é como se eu tivesse os amarrado e arrastado até aqui.

- Na verdade, é exatamente como se você tivesse feito isso. - Flora retomou a palavra - Afinal, que tipo de amigos nós seríamos se te deixássemos sozinha comendo chocolate durante um feriado como esse?

- É verdade. - Nicolas concordou - As pessoas não se comportam normalmente no Dia dos Namorados. - completou ele, gesticulando de modo a abranger as pessoas ao nosso redor - Seria perigoso abandoná-la a própria sorte nesse ambiente hostil.

Deixei meu olhar percorrer o estabelecimento, observando casais apaixonados dividindo brownies, grupos de amigos celebrando - ou lamentando - a vida de solteiro com canecas de cerveja e, por fim, a nossa mesa.

Flora, com seu vestido vermelho de bolinhas brancas e seu penteado elaborado - que era um claro desafio à gravidade -, parecia ter saído de um filme da década de 60. Nicolas, por sua vez, usava uma blusa preta de gola alta, óculos de grau alguns centímetros maiores do que o necessário e uma boina como arremate, constituindo o que Flora costumava chamar de estilo hipster chique.

E, então, havia eu.

Eu que, claramente, não possuía o mesmo senso de estilo dos meus amigos - ou a paciência para tal -, preferindo adotar um visual sem erros. O que, basicamente, se resumia em blusas pretas, calças pretas e sapatos, adivinhem?, pretos. A cor assentava bem com o tom pálido da minha pele e ressaltava as mechas roxas nas pontas do meu cabelo. No entanto, mesmo explicando à Flora todo o racional por detrás da minha escolha de guarda-roupa, ela insistia em me rotular como "gótica por preguiça".

Estou dizendo tudo isso porque, enquanto olhava ao nosso redor, foi fácil perceber o furo no pensamento de Nicolas, uma vez que éramos, claramente, o grupo mais anormal no estabelecimento.

E eu estava pronta para exprimir meu pensamento para meus amigos, argumentar que seria totalmente razoável caso eles quisessem sair para aproveitar o Dia dos Namorados de alguma outra forma, quando um grito invadiu o salão.

- Para mim já chega! - exclamou uma garçonete, jogando seu avental no chão.

Revoltada, a jovem deixou o salão na companhia dos pesados xingamentos que saíam de seus lábios. Aparentemente, trabalhar inundada pelo clima romântico do feriado havia sido demais para ela.

O sorriso de Nicolas se alargou ao observar a cena.

- Está vendo? Todos ficam loucos no Dia dos Namorados. - ele apontou para o avental largado ao chão - Ainda quer que te deixemos sozinha? - questionou, erguendo a sobrancelha.

Não consegui deixar de sorrir.

- Então você está aqui para me proteger? - o provoquei.

Nicolas se inclinou em minha direção por sobre a mesa e estendeu seu garfo, roubando um pedaço do meu precioso brownie.

- Não. Flora está aqui para nos proteger. - respondeu ele, apontado para nossa amiga - Eu vim pela companhia. - completou, piscando para mim.

Seus olhos se fixaram nos meus, brilhantes e felizes. Eu sempre havia apreciado a forma como Nicolas era capaz de sorrir com um olhar.

- Sem querer interromper esse momento completamente constrangedor para mim. - Flora chamou a nossa atenção, pigarreando - Mas podemos voltar ao foco? Ao Carnaval?

Suspirei de exasperação.

- Você sabe que eu odeio Carnaval. - lembrei a ela um fato que basicamente figurava entre os pilares da minha personalidade.

Flora não se deu por vencida.

- É claro que eu sei disso, princesa das trevas. - ela debochou - Mas é seu aniversário, Shelley. Você não vai deixar de comemorar seus vinte anos só porque é Carnaval, não é mesmo?

Na verdade, era exatamente isso que eu tinha em mente.

- Não faz nem cinco meses que eu fiz dezenove, Flora. - tentei chamá-la de volta à razão - Não acha um pouco cedo para planejarmos isso?

Minha amiga parecia estar apenas esperando pela pergunta. Ela se empertigou na cadeira, e vestiu um tom de voz solene.

- Não, "porque o tempo é implacável e rouba-nos as oportunidades se não formos suficientemente rápidos para agarrá-las imediatamente". - ela respondeu parafraseando Liv Ullmann, uma atriz e diretora sobre a qual estávamos aprendendo na faculdade de cinema.

Deixei minha testa cair sobre a madeira da mesa.

- Eu te odeio. - declarei, porque sabia que não havia forma de vencer uma discussão quando Flora já estava decidida a algo - O que exatamente vocês estão planejando para o Carnaval? - perguntei então, me sentindo mal por cada palavra que saía da minha boca.

Para minha surpresa, foi Nicolas que tomou a palavra.

- Que tal fugirmos do Carnaval? - sugeriu ele, recostado de forma despojada contra sua cadeira - Nos escondermos em uma cidade pequena, procurar uma pousada aconchegante, passar os dias vendo seus clássicos favoritos de terror... O que acha?

A proposta me pegou de surpresa.

- Isso soa... - tentei uma palavra que não deixasse exprimir o tamanho da minha animação, mas foi inútil - Fantástico. - confessei, enfim.

Meus amigos me presentearam com sorrisos luminosos.

- Sabia que você ia topar. - Flora me puxou para um abraço empolgado.

- Certo. - falei, me esforçando para continuar a respirar, minha amiga era surpreendentemente forte para alguém tão pequeno - Mas ainda acho que é cedo demais. Nem sabemos se vamos sobreviver até lá.

Flora finalmente me soltou.

- Ah, minha doce Shelley, você é positiva como um raio de sol. - criticou ela.

Mesmo me antecipando um pouco, posso contar que nós todos sobreviveríamos até o Carnaval.

O difícil seria sobreviver a ele.

Nossos 12 mesesWhere stories live. Discover now