Verdade ou Consequência? - Parte 2

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Marcela desabou no sofá, completamente molhada, e lançou os braços ao redor do meu pescoço, berrando.

-Corinha! Você veiooo! EU ESTOU TÃO FELIZ!

A música em sua cabeça devia estar bastante ruidosa, pois ela não escutou minha resposta e disparou uma conversa sobre o veneno das patas do ornitorrinco, enquanto esfregava a cabeça no meu pescoço como um gatinho.

Do outro lado da sala, Sandra colocava as garrafas e latinhas de bebida dentro de um isopor cheio de gelo, enquanto Mauro tirava o casaco para colocar por baixo dele.

-Não queremos transformar sua sala num laguinho, ruivinha! – Comentou sensatamente, e eu fiquei na dúvida se ele estava realmente embriagado ou só fazendo tipo.

O clima de festa começou a se esgueirar pelos cantos da minha sala de estar. Em pouco tempo, já havia música real tocando em ritmo frenético, farelos de doritos espalhados a esmo e até mesmo um casal com pinta de colegial dando uns amassos no corredor. O clichê dos clichês.

-O que vocês estão fazendo aqui, afinal de contas? Pensei que iam ao Pub do Brownie para o Susto.

-Não sem você, amiguinha raposinha! – Marcela falou alto, deitando-se no meu colo e virando uma latinha inteira de skol beats sem ao menos respirar.

Eu soltei uma risada violenta e desdenhosa. Não pude evitar.

O Susto era a festa de halloween que o Pub do Brownie montava todos os anos, mesmo estando em um país que claramente não tem a menor ligação com essa comemoração. (Francamente, saudades um pouco de respeito pela cultura nacional! Do dia do Folclore ninguém se lembra, não é mesmo?)

Nosso grupo costumava se reunir lá todos os anos, para zoar, encher a cara e competir no concurso de fantasias. O último ano, porém, havia sido desastroso de tantas formas que desta vez eu estava decidida a não entrar nos planos dos meus amigos irresponsáveis . Por mais que algo sob minha pele ficasse em ebulição com a perspectiva de sair e viver novas aventuras, as lembranças do ano passado era o suficiente para me manter quietinha. Conhecimento de causa, como eu disse. 

Este ano, eu estava decidida a me comportar como uma boa menina, sem me meter em confusões desnecessárias. Nada iria abalar minha resolução. Além disso eu não tinha certeza se havia perdoado os meus amigos completamente.

-Suponho que vocês terão trabalho em arrastar meu cadáver até lá, porque eu não vou nem morta!

-Seria uma ótima adição à minha fantasia deste ano! – Comentou Gustavo, enquanto tirava vários elementos de uma mochila, supostamente para tentar se fantasiar.

-Não ouse sujar minha casa com sangue-falso e outras coisas asquerosas! Largue já isso aí!

-Sabe, eu realmente prefiro você bêbada. –Ele comentou, jogando as coisas no chão e sentando-se emburrado ao lado de Mauro. – Isso aqui está muito chato! Porque viemos pra cá, mesmo?

-Porque precisamos de nossa líder! Não dá pra ter gostosuras sem travessuras, e a Cora é a rainha do Halloween! – O olhar de Mauro atravessou o meu e ficou bastante nítido que ele estava sóbrio e rindo da minha cara. Ninguém lança um olhar tão cheio de significado quando está embriagado.

-Rainha? Acho que hoje ela está fantasiada de professora chata... Pega aí, Cora, vamos começar a diversão!

E Gustavo simplesmente lançou uma garrafa no que imaginou ser minha direção, na sua mente de bêbado. A garrafa alcançou os pés de Sandra, explodindo cacos por todo lado, o estrondo sendo abafado pela música alta.

-Ops! Foi mal...

Respirando fundo para não cometer mais um crime por causa daquele bando de idiotas, saí da sala furiosa à procura de uma vassoura para limpar aquela bagunça, enquanto a sala inteira explodia em gargalhadas.

-Vem cá, deixa que eu faço isso. A culpa é minha.

Mauro barra minha passagem, tomando a vassoura e a pá das minhas mãos antes que eu possa falar alguma coisa. Não que eu fosse impedir. Era culpa dele, com toda certeza.

Ficamos nos olhando por alguns instantes, até que ele desvia o olhar, embaraçado. Aquele quê de timidez ficava bem no filho da mãe, notei meio sem querer.

-Desculpe por isso. Não devíamos ter vindo aqui. – Falou, encarando as cerdas da vassoura – Eu entendo que você não queira sair hoje, especialmente com a gente. Mas você sabe como a Marcela fica irredutível quando bebe...

-É, uma força de vontade dessas a gente tem que apreciar.

Estávamos completamente sem jeito um com o outro. Por um lado, eu ainda me sentia furiosa e traída pelo desastre do halloween passado. Por outro, Mauro havia sido um amigo excepcionalmente atencioso no meu último drama amoroso. Ele esteve lá para mim desde o momento em que cheguei na casa da Sandra, chorando como uma verdadeira imbecil, no dia dos namorados. Mauro sabia ser um bom ouvinte e tinha as vinganças imaginárias perfeitas para o nível de crueldade que a situação exigia.

-Ei. Vai ficar tudo bem. Vou tirar todos daqui e você pode voltar a fazer seja lá o que você estivesse fazendo antes da nossa chegada. – Ele deu um sorriso torto antes de completar. – Com certeza alguma atividade bastante ousada e empolgante.

-Ousadia é o meu lema. – Retruquei, um pouco incomodada.

-É... Costumava ser.

E, me olhando meio de lado, com um sorrisinho debochado, foi limpar a bagunça da sala, me deixando com um dilema ridículo que contrariava o meu bom-senso e minha capacidade de aprender com erros passados. Como sou excelente em fugir de tudo aquilo que me incomoda, decidi afastar os pensamentos, peguei alguns amendoins para alimentar os intrusos na minha sala de estar e voltei para lá.

Uma rodinha já havia se formado ao redor do isopor e o grupo gargalhava. Marcela continuava obsessivamente focada no tema dos ornitorrincos e discursava com veemência.

- Sabia que a lontra é um parente do ornitorrinco, junto com os castores? Eu sei que não faz o menor sentido, porque ela não é venenosa, mas eu juro que são parentes... True Story! – E desatou numa risada escandalosa e embolada.

– Ela é sim! Ela é venenosa com o Gregório. O Gregório deve ser um ornitorrinco! - Gustavo completou, chorando de rir com aquele momento genial de epifania.

Embora parecesse um comentário aleatório e sem sentido, um pequeno silêncio mórbido se abateu sobre os que não estavam bêbados o suficiente para compreender o que ele de fato significava. Sandra levantou o olhar e, de repente, todos notaram minha presença. Fiquei paralisada sob os olhares de Sandra, Mauro e Eliseu, sentindo o sangue fluir para o meu rosto até que ele virasse uma massa quente e pulsante de vergonha.

As coisas sempre acontecem por um motivo, dizem os mais crentes nas forças do universo. Naquele momento o motivo, claramente, era acabar com qualquer resquício da fortaleza de dignidade que eu havia construído nos últimos quatro meses. O universo tinha um senso de humor estranho. A náusea começou a tomar conta de mim e um flashback pavoroso do dia dos namorados roubou meu ar, me deixando mortificada e furiosa ao mesmo tempo.

Gustavo e Marcela literalmente rolavam de rir no chão úmido, como se uma pequena bomba de riso tivesse estourado dentro deles e abalado toda a sua estrutura interna.

-Isso... Não faz... O menor... Sem...Tido...! – Marcela arquejava, às gargalhadas. Aparentemente ela estava com tanta dificuldade de respirar quanto eu.

Peguei a garrafa de tequila sobre minha mesinha de telefone e, mandando à merda minha resolução de bom-comportamento, tomei quantos goles pude, até a queimação na minha garganta se tornar mais insuportável que as memórias.

Eu claramente não estava bêbada o suficiente para encarar aquela noite.

Continuei bebendo da garrafa até que esse problema fosse resolvido.

Nossos 12 mesesWhere stories live. Discover now