CAPÍTULO 2

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Alguns reparos introdutórios antes de ir para o que interessa

Antes de começarmos esse diálogo com a filosofia, são necessários

alguns reparos, no mínimo para afastar os chatos. O que é um chato

aqui? Alguém que acha que só se pode filosofar em alemão. O alemão

é uma língua maravilhosa para construir substantivos precisos,

inclusive abstratos, do tipo "nadidade", ou seja, aquilo que faz algo

ser "o nada" ou "um nada". Mas, como eu dizia antes, aqui me

interessa mais o fato de que todos nós temos um parentesco

profundo com o nada do que a nadidade do nada. Risadas? Merecidas.

Afinal, falar da nadidade do nada é, aparentemente, uma viagem na

maionese. Mas não é. Aqui é desnecessário.

Em filosofia esse "profundo" chama-se ontológico,

porque tem a ver com o que é essencial, como o "ser" (onto em

grego) das coisas. Viemos do nada e vamos voltar para o nada. Esse é

o parentesco profundo com o nada. Filosofa-se muito bem em

alemão, mas dizer que só se filosofa em alemão é um exagero, uma

afetação de quem nada tem na vida além do fato de que fala alemão. O

filósofo russo Nicolau Berdiaev (séculos XIX e XX) dizia que esse

nosso parentesco com o nada nos obriga a pensar sempre nele e a

enfrentá-lo sem medo. Prefiro pensar o nada assim, como Berdiaev,

a ficar pensando na nadidade do nada. Creio que se filosofa melhor

com o desespero do que com uma língua específica. Em nosso caso

aqui, sempre será em português.

Mas nem tudo são flores, e, de fato, precisamos deixar

algumas poucas coisas claras para nos livrarmos dos chatos. Ainda

que uma característica dos chatos seja que eles são sempre uma

legião. Andam em bando, como a mediocridade.

As palavras, ou os conceitos, são uma ferramenta

importante em filosofia. Às vezes, o que um filósofo quer dizer com

uma palavra não é o que outro quer dizer com a mesma palavra

traduzida para o português (a começar que, muitas vezes, as palavras

são traduzidas a partir de línguas diferentes!).

Por exemplo, a palavra "bem" para Santo Agostinho

(séculos IV e V), um cristão, não é a mesma coi sa que a palavra

"bem" para Platão (428-348 a.C.), um grego pagão. Para Agostinho,

o bem é Deus e tudo o que Dele emana. Fazemos o bem quando

fazemos o que Ele quer e nos aproximamos Dele. Para Platão, o bem é

uma ideia, uma forma imaterial, imóvel, que existe no mundo das

ideias (um lugar onde essas ideias perfeitas existem e a partir de onde

nosso mundo é feito ou copiado), não pessoal, como o Deus de

Agostinho, mas que gera o mundo pela abundância de sua bondade.

Em Platão, o bem gera o mundo pela força de sua abundância ou

riqueza. Em Agostinho, o bem, Deus, cria pela vontade livre que tem.

As ideias não são absolutamente distantes, mas não são iguais.

Pudera, Agostinho é um cristão leitor do Velho Testamento hebraico,

Platão é um grego ateniense que, a princípio, nunca ouviu falar dos

hebreus e seu Deus absoluto, que é uma pessoa ao mesmo tempo.

Como vamos enfrentar questões assim? Quando for necessário

enfrentá-las, sem usar termos em alemão ou grego. E, apontando,

quando for necessário, as diferenças. O que nos protegerá é, no

limite, a sinceridade de nosso desejo em usar a filosofia para lidar

com o mundo. E enfrentar a vida como ela é.

Outro problema é a questão da história em si. Como

colocar Nietzsche e Descartes, um do século XIX, o outro do século

XVII, para conversar se duzentos anos os separam? Simplesmente

colocando. Perdemos algo nisso? Pode ser, mas não creio que Platão

estivesse preocupado com isso quando estabeleceu as bases da

filosofia tal como a conhecemos. Interessa-me, aqui, muito mais a

fúria de querer entender as coisas e enfrentar o mundo que nos cerca

do que ser um bacharel em conceitos puros.

Resumindo a ópera: fazemos filosofia do ponto de vista

do usuário, e isso não é "trair" a filosofia, é torná-la relevante.

Quando se diz que na Grécia a filosofia tinha muito de terapia da

alma, não era outra coisa que se tinha em mente. A filosofia deveria

nos ajudar a enfrentar o mundo, a vida e a morte. Claro, se você for se

tornar um filósofo profissional, acadêmico, sinto dizer que terá,

sim, de conhecer línguas, começando pelo grego de Platão. Mas aqui

não é o caso; aqui o caso é aprender a usar a filosofia para que, quem

sabe, você levante de manhã menos perdido do que faz quase todo

dia. Ou, quem sabe, menos mentiroso sobre si mesmo e sobre o que

sente e vê. Ou, quem sabe, entenda melhor o tempo em que vivemos.

Enfim, como dizia Nietzsche, fazer filosofia em sua própria língua.

Espero que a minha filosofia em minha própria língua ajude você a

encontrar a sua. Essa é uma das razões que tenho para escrever livros

de filosofia e para ser professor, e este livro é dedicado a essa

intenção.

Filosofia para Corajosos- Luiz Felipe PondéWhere stories live. Discover now