CAPÍTULO 11

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O homem é um ser racional?

Não creio, sinto lhe dizer. Você acha que como sou um filósofo

deveria crer que o homem seja um ser racional, mas lamento dizer

que julgo algo irracional pensar que o homem, diante de tantas

provas, seja um ser racional. Ou, talvez, eu deveria ser mais

comedido e dizer que o homem é apenas em parte racional, e assim

não destruir sua fé no conhecimento. Como já disse antes, quando

discutíamos meu pequeno coro de demônios, estou longe de achar

que o conhecimento torne um homem melhor. Mais sofisticado com

certeza, melhor em termos de caráter? O contrário é mais provável.

A fé em que o homem seja um ser racional é uma bobagem

recente. Qualquer hegeliano ou marxista de plantão diria que só com

a emergência do mundo moderno burguês, que precisa de uma

sociedade racionalizada em seus processos para que o dinheiro

circule com segurança de retorno ainda maior, é que o homem

começou a querer se ver como um ser plenamente racional. Por isso,

o Iluminismo e sua baboseira racionalista. Mesmo para um Platão

que buscava se livrar do pessimismo trágico da religião grega era

claro que no homem nem tudo é racional. A ideia de que o homem é

um ser racional vai bem com a ideia, necessária no mundo burguês,

de que ele é autônomo. Mas tanto a racionalidade quanto a autonomia

são uma pequena parte da vida humana, ainda que não devamos

buscar mais racionalidade e mais autonomia da vida. Kant estava

certo em defender a noção de "maioridade" como sendo a capacidade

humana de assumir suas decisões a partir de um esforço de

autonomia e racionalidade. Nem sempre isso é possível.

O que faz o homem não ser racional plenamente? Muitas

coisas. Instintos, taras, o corpo e sua fisiologia e patologia, o

contexto psicológico em que nasceu, a falta de grana, o

ressentimento que o afoga em inveja do cunhado mais rico ou da

cunhada mais gostosa, enfim, motivos é que não faltam para não

sermos plenamente racionais.

Existe, entretanto, um motivo mais profundo para isso.

Os gregos usavam a palavra pathos para descrever forças, internas ou

externas, capazes de nos submeter. Traduzimos essa palavra por

paixão ou emoção, mas também por doença (patologia). Nossa

capacidade de agir racional e autonomamente depende do quanto de

pathos age sobre nós. Portanto, desde a filosofia antiga, suspeita-se

dos limites da autonomia racional humana. Na filosofia medieval, o

cristianismo acaba trazendo para dentro desse debate a ideia de

pecado. O pecado destrói nossa capacidade de julgamento e

entendimento da realidade, fazendo-nos de escravos da

concupiscência (a atração irresistível pelo pecado): basta lembrar de

você dominado pelas pernas de uma gostosa, ou você, cara leitora,

desejando muito fazer coisa errada por aí...

Já na modernidade, autores como os românticos (de que já

falamos antes) duvidavam dessa racionalidade toda e achavam que ela

poderia nos enlouquecer porque seria contra nossa natureza meio

misteriosa e irracional. Foram esses românticos que pela primeira

vez falaram em inconsciente. Freud e seus seguidores criaram uma

disciplina, a psicanálise, que negava a plena autonomia do Eu

("ferida narcísica" na linguagem de Freud era saber que não somos

senhores em nos sa própria casa, o inconsciente é esse senhor).

Imersos em traumas inconscientes e em pulsões infinitas, para a

psicanálise, conseguimos só com muito esforço um pouco de razão e

um pouco de autonomia.

Mesmo o marxismo e companhia e seu conceito de

ideologia determinaram que nossa classe econômica definiria em

parte nosso pensamento e nossas emoções.

Então, o que sobra disso tudo? Vale a pena buscar ser

racional e responsável? Claro que vale, mas não queira recompensas.

Nada garante que vai dar certo, mas, creio, a experiência do

amadurecimento mostra que, ainda que seja precária, a tentativa de

olhar para o mundo pelos olhos da razão sempre nos ajuda a

entendê-lo melhor. E isso nos leva a alguma experiência de

autonomia. O homem não é um ser racional plenamente, nem pode

sê-lo, a menos que seja doente. Nem por isso devemos desistir de ser

racionais em alguma medida. Como dizia o grande Nelson Rodrigues

(século XX), a razão é algo que se busca com o mesmo sofrimento

que a santidade. Muitas vezes contra sua própria natureza de bicho.

Nesse sentido, ser racional é um esforço que merece nosso cuidado.

Filosofia para Corajosos- Luiz Felipe PondéOù les histoires vivent. Découvrez maintenant