CAPÍTULO 30

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O silêncio do mundo

O pior dos problemas: o que fazer com tanta gente feliz junta? No

filme Interestelar, num dado momento, o personagem principal

(interpretado por Matthew McConaughey) pergunta a seu sogro o

porquê de o mundo ter se transformado naquilo (aridez, pobreza,

poluição, retração econômica, ruralização). O sogro responde que 6

bilhões de pessoas querendo ser felizes não podia dar em outra coisa.

Não quero falar só do tema já desgastado da

sustentabilidade. É o desejo humano que é insustentável. A felicidade

vai destruir o mundo. Uma humanidade de 6 ou 7 bilhões de pessoas

felizes será a maior praga que já caminhou sobre o mundo. Nenhuma

das sete pragas sobre o Egito teve esse poder dissolutivo. Como

numa espécie de alucinação, marchamos sempre em frente, supondo

que a felicidade, entendida como realização de nossos desejos

individuais (como dissemos no momento em que discutíamos o

hedonismo contemporâneo), seja sustentável.

Uma das principais indagações acerca do futuro da

felicidade humana vem do evolucionismo (entre outras frentes

possíveis): será que uma espécie que não evoluiu num ambiente de

felicidade como realização do desejo individual suporta essa guinada

em direção ao átomo moral que é o sujeito?

Nossa evolução se deu num ambiente de deveres e não de

direitos. O próprio sucesso do capitalismo aconteceu graças à moral

dos deveres e não dos direitos. A felicidade do indivíduo nunca foi

critério para a sobrevivência da espécie. O bando original, cuja

última representação é a família, também em processo de dissolução,

deixou de ser a referência. A nova referência é o sujeito e seus gostos.

Nada garante que nossa espécie esteja adaptada à obsessão pela

felicidade individual.

Quando me perguntam por que eu pareço desprezar a

minha época, lembro a conversa do personagem romântico

interpretado por Tom Cruise no filme O último samurai. O coronel,

detestado pelo capitão Nathan Algren (Tom Cruise), pergunta a razão

de ele desprezar tanto seu próprio povo (no caso, a civilização

violentamente moderna e mercantilista dos EUA). Eu não tenho

nenhuma dúvida sobre a potência do capitalismo em produzir

felicidade e qualidade de vida material na grandeza que produz.

Nenhum outro sistema conseguiu fazer isso. Minha dúvida é se nossa

espécie suporta tanta felicidade sem se tornar uma espécie

irrelevante. Espécie recém-chegada ao mundo, imagino, seguindo os

passos do filósofo inglês John Gray em seu The silence of animals, de

2013, que os outros animais nos contemplam do alto de seus

milhares e milhares de anos de adaptação a este mundo. Como diz

Gray, antes de nós, a inquietação constante dos neandertais deve ter

sido objeto de ceticismo por parte do silêncio desse mesmo mundo.

Filosofia para Corajosos- Luiz Felipe PondéWhere stories live. Discover now