CAPÍTULO 23

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A cadeia alimentar como modelo profundo da vida social

O mundo contemporâneo é violento, apesar de muita gente posar de

blasé nele. A violência advém da fluidez (ou do líquido que marca o

mundo atual, nos termos do sociólogo Zygmunt Bauman) que

permeia todas as relações. Tudo é commodity e pode ser vendido,

inclusive você. Não se engane: se ninguém quiser consumi-lo não é

porque você venceu a "mercadoria" que permeia o mundo do

capitalismo tardio, como diz o filósofo Theodor Adorno no século

XX, mas porque você não vale nada. A diferença é o valor de uso que

você tem em cada um dos mercados em que atua (não há relativismo

de valores de fato; o dinheiro é o único valor que não é relativo entre

nós). O valor profissional é o mais evidente. Por exemplo, se você

trabalha no que gosta, seu lugar na cadeia alimentar é sempre

especial porque o fato de optar pelo trabalho que tem já diz que você

tem poder de barganha nas relações profissionais, por isso a moçada

picareta do capitalismo consciente – da qual falei antes – gosta de

dizer que buscar significado no trabalho é uma marca revolucionária

dos jovens. Coisa nenhuma: viver experimentando significado na

vida (coisa que os românticos já tinham falado no final do século

XVIII, como eu disse anteriormente) é um luxo na cadeia alimentar

contemporânea. E por uma razão simples: como vimos antes, a busca

de significado na vida é o "x" da questão humana. Num mundo

marcado pela produtividade como o nosso, quem produz

experimentando significado na atividade que exerce já está bem na

cadeia alimentar. Está mais para leão que para coelhinho.

Perceber o mundo como cadeia alimentar é percebê-lo

numa chave darwinista. Aprecio muito o darwinismo, entre outras

razões, porque considero o Alto Paleolítico (cerca de 30 mil anos

atrás) o período áureo da humanidade. Éramos poucos, com uma

logística leve, sem luxos e organizações políticas complexas,

conhecíamos muito mais nossas necessidades, e éramos muito mais

ágeis do que esses macacos que babam em cima das tecnologias da

informação. E nossas crianças eram muito mais inteligentes. E nossas

mulheres menos histéricas. E os homens menos mesquinhos.

Antes de tudo, acho a imagem da cadeia alimentar útil

para entender a vida porque ela trai a verdadeira estrutura política

por detrás de toda ordem política. E também porque o mundo

contemporâneo é um mundo sem metafísica. Mesmo quando se faz

metafísica nele, trata-se de metafísica centrada no ego, logo, uma

metafísica narcisista. E tudo o que é narcisista não tem fôlego: o

narcisista é alguém sem ar. Como eu dizia antes, a violência da ordem

produtiva – da qual não podemos escapar porque queremos ser

felizes material e espiritualmente, e o espírito custa mais caro do que

a matéria – está em toda parte. Na atomização das famílias, na

efemeridade dos vínculos, na infertilidade das mulheres, na covardia

interesseira dos homens. Pelo fato de sermos condenados a produzir

uma vida descolada da realidade material objetiva, porque nosso

desejo é infinito, vivemos num mundo em que a vida como cadeia

alimentar toca as estrelas. O mercado da espiritualidade

contemporânea, sempre a serviço dos projetos do self, trai a

escravidão, a vida selvagem que nos atormenta em nossos pesadelos

e que faz nos sentirmos inseguros em qualquer lugar, porque

sabemos que, no fundo, não valemos nada. Alguém sempre pode

valer mais. Construímos um mundo muito complexo em sua

organização, mas continuamos a ser o animal acuado da pré-história.

Filosofia para Corajosos- Luiz Felipe PondéWhere stories live. Discover now