CAPÍTULO 28

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O mundo está ficando mais desumanizado? Culpa da mania de perfeição



Na segunda metade do século XIII, na França, um grupo de filósofos

conhecidos como averroístas latinos (porque sendo cristãos latinos,

leitores de Aristóteles e seu comentador espanhol mouro Averróes

receberam o nome de averroístas latinos). Esses autores tiveram

muita dor de cabeça com a Inquisição porque afirmavam que a

felicidade (entendida como vida equilibrada e longe de vícios) podia

ser atingida via uso do intelecto (algo próximo ao que hoje

chamaríamos de razão). Nesse sentido, seguiam a filosofia tanto de

Aristóteles quanto de seu comentador muçulmano Averróes. O

conflito veio porque, para a teologia da Sorbonne (leia-se, da Igreja),

a felicidade era muito mais dependente do conhecimento revelado

(teologia, Bíblia, magistério da Igreja) do que da filosofia,

compreendida como uma atividade um tanto livre de dogmas. Esses

filósofos (o mais famoso deles, o médico Siger de Brabant, membro

de uma importante família de uma região que hoje é parte da Bélgica

e leva o mesmo nome, Brabant) tiveram de sair da Sorbonne e muitos

(Siger, entre eles) fugir de Paris. Essa é a primeira vez na história que

se conhece uma perseguição a intelectuais pela Igreja.

Alguns montaram grupos de estudo de Aristóteles e

Averróes nas pequenas ruas ao redor da Sorbonne, e, então, aquela

região ficou conhecida como quartier latin, por causa desses

averroístas latinos e não por causa do exilados latino-americanos

dos anos 1960 – quiseram eles ter essa importância toda na vida de

Paris.

O foco filosófico do problema, porém, era: o homem,

pelo uso livre da razão, pode construir sua felicidade e atingir um

grau maior de perfectibilidade (tornar-se cada vez melhor)? Os

averroístas latinos achavam que sim, os católicos (que liam

Aristóteles também, mas davam uma aliviada na autonomia da razão

humana sem a graça de Deus) achavam que não. No século XIII, os

católicos levaram a melhor de certa forma, pelo menos no que se

refere ao emprego da universidade – até hoje, a universidade é muito

mais uma questão de quem consegue botar para fora seu inimigo do

que quem pesquisa mais. Mas isso é outra história.

Já nos séculos XVI e XVII na França, a coisa virou. A

tendência, inclusive por causa do esfacelamento feudal e da entrada

da burguesia e sua busca de sucesso e aperfeiçoamento nos negócios,

foi a virada do jogo. Já no século XVIII, a ideia de perfectibilidade do

homem a partir do uso de sua razão, técnica e ciência estava

instalada, como todo mundo sabe quando estuda o Iluminismo e o

surgimento da ciência.

A verdade é que uma das razões da desumanização, de que

pouca gente se dá conta, é essa busca de perfectibilidade contínua da

vida em todas as fren tes. Inteligentinhos de todos os tipos berram

contra a mercantilização das relações, que é verdade e faz mal

mesmo, contra as máquinas, contra o capital, contra a Igreja, mas

não querem perceber que a principal causa da desumanização

moderna é a busca de perfeição, aperfeiçoamento, perfectibilidade ou

progresso (tudo mais ou menos a mesma coisa).

Os medievais entendiam que o homem tem um dano em

sua estrutura, que é o pecado. Com a superação dessa teoria (o livro

de Pico della Mirandola Discurso sobre a dignidade do homem, de

1498, é um marco na virada desse debate) pelos defensores da

perfectibilidade moral e técnica do homem, entraremos na era em

que muitos supõem que é o próprio homem quem atrapalha seu

aperfeiçoamento, na medida em que é de carne e osso e que tem

paixões desorganizadoras. Vivemos numa era eugênica: todos

querem ser belos, saudáveis, eternos, bem resolvidos e cheios de

técnica. O pós-humanismo (não vou discutir essa teoria louca aqui)

crê que numa mescla com a robótica vamos superar esse corpo

miserável. A moçada do marketing moral acha que com a educação e

a propaganda podemos criar um mundo em que todos sejam

homens, mulheres e labradores ao mesmo tempo, e que ninguém

tenha ciúme ou vontade de comer picanha. Como não ver que a fúria

pelo progresso contínuo chegará à conclusão de que é o humano no

homem que nos atrapalha?

Isso jamais será dito de forma clara porque somos a

civilização mais hipócrita que já existiu, mas a principal causa da

desumanização que enfrentaremos no futuro será aquela em nome do

bem e da qualidade de vida. Mas, enquanto isso estiver acontecendo,

os bancos farão comerciais de como lagos e montanhas são lindos e

bons para a saúde e o equilíbrio dos casais, sejam eles héteros ou

homos.

Filosofia para Corajosos- Luiz Felipe PondéWhere stories live. Discover now