CAPÍTULO 25

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Existe um eu verdadeiro?

O eu se tornou uma das últimas utopias no mundo contemporâneo.

Fracassadas as utopias institucionais históricas, o modelo hippie se

fez tendência de marketing de comportamento. Modelo hippie: muito

papo furado, estilo peculiar de se vestir, recusar a vida dura e ter

pouco ônus nos vínculos.

Uma das chaves dessa tendência é o aparelhamento do eu

como saída para a vida. Se tudo é incerto (amor, trabalho, família,

saúde), que meu eu e meu corpo se tornem meu templo. Daí a

pergunta: existe um eu verdadeiro, que devemos buscar como

refúgio para uma vida tomada pela contingência de tudo (hoje tenho

trabalho, amanhã talvez não; hoje tenho amor, amanhã talvez não;

hoje tenho convite para a balada, amanhã talvez não)? Ou seja, existe

um eu verdadeiro a salvo de uma vida onde nada seja garantido?

A ideia vem do Romantismo. Werther, personagem do

livro de Goethe que leva seu nome, já dizia que em meio ao seu

sofrimento pelo menos tinha um eu para se refugiar. Ao final, esse

produto romântico se transformou num grande agente de consumo e

de alienação, não porque não existamos como indivíduos

psicológicos, mas porque esse eu, fruto de processos bioquímicos e

elétricos, de laços sociais, históricos e políticos, de uma gama de

experiências existenciais, não é um lugar a salvo de nada. A filosofia,

desde o estoicismo antigo e do hedonismo grego, como vimos antes,

busca tornar a vida menos dependente do meio a sua volta, reduzindo

o desejo pelo mundo, o que pode soar, com razão, um tanto

deprimente e repressivo do desejo pela vida. Como também já vimos

antes, nossa concepção contemporânea de prazer, entendida como

realização de um desejo eternamente insatisfeito, é um empecilho

enorme à ideia de nos tornarmos independentes das demandas do

mundo. Ao contrário, nosso eu verdadeiro se torna cada vez mais

dependente do que existe a sua volta.

Por mais que a publicidade mostre homens e mulheres em

cenários distantes e isolados em meio a uma natureza belíssima,

essas cenas sempre são acompanhadas de produtos que são de alguma

forma necessários para vivermos esses cenários, sejam carros,

esportes radicais e suas ferramentas indispensáveis, sejam hotéis ou

pousadas charmosas, sejam companhias aéreas, agências de turismo,

ou bancos e suas linhas de crédito para qualidade de vida ou casa

própria. Só um idiota fora do normal acredita que esse eu

verdadeiro, produto de uma sopa química e de vínculos sociais

materiais, pode se esconder do mundo, quando para estar escondido

é preciso tantos objetos caros. No mínimo, o que é ainda mais

ridículo, esse eu verdadeiro necessitará de terapias (que são bem

caras) ou de uma loja com roupa de um estilo descolado específico

que o torne "diferente" do restante dos mortais. Permanecendo o fato

de que, se ele compra roupas numa loja de pessoas diferentes, um

monte de outros consumidores "diferentes" como ele comprará

roupas no mesmo lugar.

Enfim, não existe esse eu verdadeiro a não ser como mais

um produto nas prateleiras do mundo contemporâneo, que há muito

desistiu de qualquer ideia de personalidade em favor de uma ideia

com menos ônus, que é a de estilo e de felicidade a todo custo.

Filosofia para Corajosos- Luiz Felipe PondéWhere stories live. Discover now