15 - Uma simples dança

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Cheguei ao estúdio de dança às 19h.

— Oi, Sara. Tudo bem?

— Oi, Alma. — a recepcionista devolveu o sorriso já pronta para sair. — Vai ficar até que horas hoje?

O estúdio já estava fechando, mas como eu era praticamente de casa, me deixavam ficar depois do espediente. O meu horário era apertado por causa da escola e às vezes precisava ensaiar de noite, então eles me deixavam com uma chave reserva.

— Talvez uma hora e meia, ou duas.

— Bom estudo, então. Tchau.

— Tchau, Sara.

Me dirigi à sala 3, destranquei a porta e entrei. Já era noite, mas algumas vezes gostava de dançar no anonimato da escuridão. Deixava que ela me engolisse até perder a minha identidade e sobrar apenas a dança em estado puro, bruto, como a própria vida. Não acendi a luz. Comecei a sequência de exercícios de aquecimento na barra junto ao espelho. Já podia sentir a minha mente começar a relaxar enquanto o meu corpo se alongava.

Eu me olhei no grande espelho que estava à minha frente, iluminado apenas pelo reflexo da noite que invadia a janela. Quase desejei ver o meu futuro. Um boato envolvendo o meu nome. A expectativa era que eu conseguisse um convite, um teste para entrar ainda aquele ano para a academia de dança Dolabella, a academia vinculada à minha escola, o ballet no qual sonhava trabalhar desde os seis anos. Me apeguei com a força de um incêndio à essa labareda de esperança.

Coloquei a música para tocar. Eu adorava aquilo. Melodia, harmonia e ritmo. Esvaziei a minha mente e entreguei o meu corpo a seu próprio domínio. A música e a dança me escravizaram. Os acordes de Thinking Out Loud, embalados na voz doce e envolvente de Ed Sheeran, seduziram os meus sentidos e eu me desliguei do mundo. Distanciei-me de mim mesma.

"And I'm thinking about how"
(E estou pensando em como)
People fall in love in mysterious ways"
(As pessoas se apaixonam de maneiras misteriosas)

O contorno de um rosto apareceu por trás das minhas pálpebras.

"Maybe just the touch of a hand"
(Talvez apenas com o toque de uma mão)

A sensação do calor de dedos acariciando a pele dolorida do meu tornozelo.

"Well me, I fall in love with you every single day"
(Bem eu, eu me apaixono por você a cada dia)

Lábios quentes que tocam um pulso.

"And I just wanna tell you I am."
(E só quero te dizer que estou.)

A pronúncia de um nome que me fazia arrepiar.

"So honey, now, take me into your loving arms"
(Então amor, agora, me abrace amorosamente)

O cheiro de uma respiração.

"Kiss me under the light of a thousand stars"
(Beije-me sob a luz de mil estrelas)

Um gosto... ainda desconhecido.

Um vulto no espelho, engolido pelas sombras às minhas costas. O meu espírito retornou ao mundo real. Arfei ao mesmo tempo em que me virei num rompante. A sala estava escura e vazia. Corri até o interruptor e acendi a luz. Meus olhos varreram a sala vazia. Desliguei o som. Estou ficando paranoica? Pousei os olhos na porta... estremeci. A porta estava aberta.

— Olá? — esperei uma resposta. Nada. — Olá?— disse me encaminhando para fora da sala. —Tem alguém aí? — olhei para todos os lados sem encontrar ninguém.

Me dirigi para a recepção. As luzes estavam apagadas mas dava para ver a porta de entrada escancarada. Medo. Alguém entrou ali. Sara nunca deixava a porta aberta. Todos os meus sentidos ficaram em alerta. O problema era saber se alguém estava lá dentro, ou se havia saído e agora estava lá fora.

Hora de ir para casa. Voltei à sala 3, peguei a mochila e passei voando pelo saguão. Trombei de cara com ele na saída. Um grito me escapou pela garganta e eu cambaleei para trás. Ele também se assustou e disse:

— Cruzes menina! Quer me causar um enfarto?

Um velhinho ligeiramente barrigudo me olhava com olhos arregalados.

— Sr. Duval! — me joguei para ele e o abracei num reflexo. Às vezes ele fazia a limpeza no período da noite.

— Quem mais seria? E o que a senhorita faz aqui com tudo apagado?

Eu me desgrudei dele, mas não tanto assim.

— É que... eu estava... aí vi um vulto...

Ele acendeu a luz e balançou a cabeça para mim.

— Vocês, crianças, sempre vendo fantasmas! Não deveriam ficar assistindo a essas porcarias de terror na televisão.

— Quantas horas são? — dei uma risada nervosa e sequei as mãos na roupa, estavam suadas.

— Quase 22h.

Dancei por quase três horas e nem me dei conta!

— Já vou indo, então. Tenha uma boa noite.

— Até mais, Alma.

O trajeto até em casa não costumava ser muito movimentado, mas àquela hora, estava deserto. Eu não sabia o que me assustaria mais, ver ou não ver alguém lá. Vazia como estava, parecia horrivelmente fantasmagórica. Apressei o passo. Fiquei repetindo na minha cabeça que os mortos não machucavam ninguém, o problema eram os vivos. Então era bom que não tivesse nenhum ali.

Um vento frio varreu o meu corpo e me fez cruzar os braços no peito. Parecia que o inverno realmente chegaria mais cedo aquele ano. Mas talvez nem tudo fosse frio. Existia algum tipo de calor dentro do verde de olhos feitos de florestas ensolaradas.

Eu jamais imaginaria que o destino podia bagunçar tudo e deixar um coração ao avesso com uma simples dança.

É possível amar alguém sem precisar tocá-lo? É possível amar alguém só por um olhar? É possível se quebrar inteiro só de assistir alguém dançar? Talvez a resposta fosse não. E se assim fosse... não era bem essa a cara do amor? Sentimento arredio que se entrelaça de mãos dadas ao impossível?

Ali, se eu tivesse me virado mais uma única vez, teria visto a silhueta do meu caçador, me fitando com um semblante vazio e um olhar quebrado. Completamente derrotado.

E aquele era, exatamente, o começo do meu fim.       

       

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Olá! 

Desabafo da autora: Acho essa música escandalosa de lindaaaaaa!!!!! Pronto me recompus! kkkkkk

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Doce Pecado | 1Onde as histórias ganham vida. Descobre agora