47 - Brumas

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— Olha. — Gael sussurrou no meu ouvido. No horizonte, não muito longe de onde estávamos, era possível ver uma nuvem branca espessa. — Estamos quase lá.

Observei a fumaça. Quase lá. As Brumas abrigavam o berço das sereias. Era lá que os corpos afogados eram transformados. Os homens eram devorados e as donzelas ganhavam caudas de peixe. A sereia de corpo tão diáfano quanto a própria nevoa, não vivia nas águas do mar, mas nas partículas que formavam o nevoeiro. A Sereia das Brumas. Era dela a lágrima que iriamos coletar, o mais perfeito fruto da persuasão.

Mas como encontrar a direção em névoas densas como a neve? Como se coleta uma lágrima de olhos para os quais não se pode olhar?

A floresta terminou na praia de uma baía. Somente a borda do mar era visível, o restante... envolvido em nuvens que chegavam ao céu. Ficamos lado a lado, observando a névoa à nossa frente. O sol estava a pique. Uma sombra escureceu o dia acima de nossas cabeças.

Mas será que não dá para fazer uma pausa?! Eu preciso respirar um pouco antes de outra coisa tentar me comer! Eu mesma precisava comer!

— Um banho não faria nada mal, não acham? — Elisa pousou com graça ao nosso lado. Tampando o nariz ela fazia uma careta de nojo. — Eu sei que argila pode ser um ótimo tratamento de limpeza para a pele, mas isso não inclui chafurdar na lama como porcos! — ela ria de nós dois descaradamente.

— Elisa! — me joguei em cima dela, num abraço apertado. — Estou tão feliz de ver você!

— Bom — ela se contorcia tentando se livrar do meu abraço sufocante. —, digamos que o sentimento será recíproco depois que você entrar ali naquela água gelada e se lavar.

— Estou tão feliz de te ver! — me afastei um pouco e apertei um beijo na bochecha dela. Ela riu e se rendeu, me abraçando de volta.

— Agora que todos estamos cheirando a cadáver, talvez a sereia não queira nos devorar, uma vez que já estamos mortos! — ela brincou.

— Vai lá e experimenta. Daí você fala para a gente se seu plano funciona. — Gael sorria torto para ela, de braços cruzados.

— Vocês, homens, são uns folgados! Sempre esperando tudo na palma da mão. — Elisa cochichou para mim de olhos arregalados: — Ainda não se livrou dele?! — ela deu um tapinha no meu braço. — Pobrezinha! Você arranja coisa melhor!

A água estava muito gelada! Muito! E não conseguiu nos deixar limpos. Ia precisar de muito sabão para acabar com aquele fedor de enxofre.

Ainda bem que flores do fogo eram comuns e conseguimos acender uma fogueira. Tinha arbustos comestíveis por lá também. Sem dúvida, o melhor tempero era a fome. Descansamos o restante da tarde.

A barca só poderia ser convocada sob a luz prateada do luar. O marinheiro que a conduzia, rondava águas gélidas noite após noite em busca de corpos afogados. Era nesse barco que Gael e Elisa queriam que eu entrasse.

Quando a noite chegou e trouxe consigo a negrura do céu e a prata da lua, Gael recitou a poesia que traria nosso guia de dentro do nevoeiro.

A melodia doce da bruma envolvente
A morte esconde no mar insolente.
E a donzela bela, indefesa e inocente
Vagará a procura de vidas eternamente.

Sobre águas profundas
O barqueiro navega.
O seu mundo sombrio
Um reflexo frio
Do silêncio das almas
Que a balsa carrega.

Eu estava apavorada! Quando o barqueiro começou a apontar das névoas o meu esqueleto chacoalhou inteiro.

De pé sobre a popa de uma gôndola, uma figura masculina, flutuava em nossa direção. Usando uma roupa velha, desbotada e suja, ele manobrava seu longo remo para impulsionar a embarcação em movimentos tranquilos. Ele parou à nossa frente, descoberto pelas brumas, banhado pela luz da lua. Aquilo parecia uma assombração. Seu rosto não era visível porque estava encoberto pela aba do chapéu. A única parte que dava para ver era a barba, estranhamente grossa, como pedaços de corda.

— Leve-nos até ela. — Gael falou.

O barqueiro esboçou um sorriso, um arquear minúsculo dos cantos da boca.

— Entrem.

O barco começou a se mover em direção ao nevoeiro e pude ver melhor a barba dele, embora o rosto ainda estivesse encoberto. Eu vi as unhas roxas de defunto. Dedos! O meu corpo percorrido por um espasmo violento me fez dar um pulo para trás.

— O que foi? — Gael me perguntou com uma ruga de preocupação.

— Nada. — respondi depressa, desviando os olhos e tentando me controlar.

Uma risada baixa, porém macabra, ecoou da boca do marinheiro.

— Posso ouvir o bater ensandecido do seu coração. — ele levantou o rosto, direto para mim, e o que estava oculto se revelou. No lugar dos olhos, apenas duas cavidades negras vazias. — A canção da vida.

Nós três demos um pulo para trás. O barco oscilou com o movimento brusco. Gael, já de espada em punho, apontava para a jugular do marinheiro.

— Não se aproxime. — avisou com uma voz densa.

— O que pretende fazer, guerreiro valente? — o barqueiro estava se divertindo. — Não pode decepar minha cabeça. O corpo de uma alma não tem matéria.

Naquela hora, se eu tivesse um par de asas, até um quebrado mesmo como o do Gael já serviria, nada, absolutamente nada, teria me feito permanecer naquela barca.

— Não se preocupem comigo. Eu não sou o monstro aqui. — ele voltou a esconder o rosto nas sombras. — Sentem-se. E apreciem a viajem. Será a última.

Olá! Elisa mandou avisar que estava com saudade de vocês

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Olá! Elisa mandou avisar que estava com saudade de vocês.

Bjos e até sexta!

Doce Pecado | 1Onde as histórias ganham vida. Descobre agora