50 - O confronto final

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Um burburinho distante de vozes conseguia alcançar os meus ouvidos, mas não o meu cérebro. Eu não entendia o que estava sendo dito. O meu corpo estava sendo comprimido de forma vigorosa em intervalos curtos. Para cima, para baixo. Para cima, para baixo. Eu tinha consciência da dor. Ar entrando pela minha boca, rasgando a minha garganta, abrindo passagem à força até os meus pulmões. Dor. Pressão sobre o meu peito. Ar. Dor.

Uma tosse convulsiva me rasgou inteira dando lucidez à minha mente. Eu me virei de lado, tossindo e vomitando. Ar! Eu precisava de ar! Mas respirar doía.

Gael me abraçou com força. Uma dor quente escureceu a minha visão outra vez. Elisa me olhava com olhos inchados e vermelhos, mas um grande sorriso no rosto.

— Achei que tivesse perdido você. — ele sussurrou rindo e alisando o meu rosto. — Nunca senti tanto medo na vida. Como se sente?

— Como se... tivesse sido atropelada... por uma manada de elefantes. — a voz saiu rouca.

As ondas, batendo contra a encosta, arrebentavam em espuma, espirrando água em nós.

— Onde estamos? — o mar se estendia revolto à nossa frente sem sinal das brumas. — Eu vi as sereias.

— Fomos salvos pelas quimeras. — respondeu. — O castigo que as aprisiona ao corpo de animais é suspenso quando salvam alguém de se afogar. Como recompensa, voltam a habitar as águas doces como náiades.

— Eu queria ter visto. — reclamei imaginando as criaturas, então me lembrei de um detalhe importante. — A lágrima!

— Não se preocupe, pegamos de volta. — Elisa me tranquilizou. — Fomos arrastados pelo mar até muito mais perto da vila do que havíamos imaginado. Margeando a costa, devem ser umas quatro, cinco horas de caminhada. Chegamos lá antes do amanhecer.

Só faltavam os últimos passos. E eram esses, que podiam colocar toda uma jornada a perder.

Quando alcançamos o vilarejo, ele ainda dormia, mas o sol não tardaria a nascer. O povoado parecia uma cidade antiga toda rodeada pela floresta. Era como se a primavera tivesse espirrado suas cores sobre a vila.

No centro de tudo, como um farol, estava a torre que guardava a sala sagrada. Subimos a escadaria espiralada até o topo. Um grande cristal espelhado refletiu o nosso reflexo. Ao lado estava o pedestal onde repousava o cálice esculpido em diamante puro.

Todas as noites o copo era cheio com uma estrela que despenca do céu. Elas caíam da noite, chovendo dentro do lago onde, se deixadas até o amanhecer, se transformavam em pérolas lisas e perfeitas.

Olhei o líquido cintilante como a própria luz dentro do cálice. Uma estrela cadente. Elisa espremeu a lágrima da sereia dentro do copo. Depois que o sábio bebesse, seguiria qualquer ordem, inclusive defender o portal com a própria vida.

Todas as manhãs, o grande sábio bebia aquela luz dourada antes do primeiro raio de sol tocar a face do cristal mãe. Nesse momento, os caçadores que carregavam um pingente daquele cristal, entravam em meditação profunda, estabelecendo uma conexão visual e auditiva com o seu governante. Era assim que ele se conectava com o mundo de fora. Aqueles que se recusavam a participar do ritual, declaravam sua rebelião, como Gael e Elisa.

Vozes abafadas e passos anunciaram que teríamos companhia. Nós nos escondemos atrás do cristal. Os sábios entraram, trajando mantos feitos das penas das corujas nas quais se transformavam.

— Alguma novidade? — o mais velho perguntou.

A única mulher do grupo, uma jovem de cabelo e pele morena, deu um passo à frente.

— Ainda não, meu senhor. Os amnatos seguiram seu rastro até a parte leste da floresta sombria. É quase certo que estejam mortos.

Nós não estamos mortos, isso eu posso garantir.

— Não permita que o preocupem, meu pai. — acrescentou. — Não passam de traidores ingratos.

— Sim, minha filha, mas... uma guardiã. — o ancião saboreou a palavra. — Aqui. No reino natural. Depois de tanto tempo. Não poderei descansar enquanto não souber que está morta. O que estaria tramando?

Hora de esclarecer algumas dúvidas.

— Mas o que... — o velho sábio arregalou os olhos quando nos viu saindo detrás do cristal.

Murmúrios tumultuaram a sala. Os três filhos rebeldes e selvagens, estavam de volta ao lar e acabavam de invadir o trono.

Todos eles falavam ao mesmo tempo, ligeiramente desbaratados. Uma fala sobrepondo-se à outra em confusão.

— Não podem estar aqui!

— Traidores!

— Eles vieram nos destruir!

— Rebeldes! Irmãos rebeldes!

Gael guardava a entrada, impedindo que saíssem da torre, com uma expressão visivelmente divertida. Elisa os havia arrebanhado, encurralando-os contra a parede. O semblante dela era mais ameaçador do que a arma em punho. O corpo rígido, assas para fora, suja e hostil. Selvagem.

Eu encarava o líder, separado do rebanho com a ponta da adaga encostada em sua garganta.

— Silêncio! — ordenou com firmeza. Todos se calaram, obedecendo prontamente ao líder. Ele, então, se dirigiu a nós: — Vocês serão enforcados por sua rebeldia e irreverência. É uma afronta interromper o ritual da conexão. Rendam-se perante seus soberanos.

Elisa deu uma gargalhada sinistra.

— Cala essa merda de boca ou eu mesma vou aí calar para você! Se ainda não percebeu, não está mais no controle aqui.

— O que vocês querem? — ele olhou diretamente em meus olhos.

— Beba. — indiquei o cálice com os olhos. — Nós não viemos interromper a conexão.

— O que pretendem? — o velho sábio franziu o cenho, desconfiado.

Elisa lhe lançou um olhar que era tanto uma ordem como uma ameaça.

— No seu lugar, eu obedeceria. — avisei sem desviar os olhos dele.

O sábio ergueu o cálice e o levou aos lábios. Todos observávamos, vidrados, cada milésimo de segundo de seu movimento. Assim, nenhum de nós percebeu a lâmina que sorrateiramente deixava seu abrigo, como um animal peçonhento, empunhada na mão do oponente.

Tudo aconteceu ao mesmo tempo. O sábio bebeu do cálice. O dia nasceu. A luz refletiu no cristal. A serpente deu o bote. A faca se cravou no ventre de Elisa.

Eu vi os movimentos em câmera lenta. Gael correndo em direção à irmã. Elisa cedendo. O canto da espada decapitando o agressor. Os mantos se transformando em asas. A eletricidade enchendo o ar. O ancião à minha frente assumindo a forma de um pássaro. A cor funesta de vermelho carmim de uma pessoa amada.

O grito que me dilacerava saiu com selvageria através dos meus braços quando o agarrei pelas têmporas.

— Olhe. Para. Mim!

Olá a todos!

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Olá a todos!

Estou torcendo para que gostem do final!

Vejo vocês de novo semana que vem. Montes de bjos!

Doce Pecado | 1Onde as histórias ganham vida. Descobre agora