48 - Sereia

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Um movimento ou outro desequilibrava levemente a balsa de tempos em tempos. O barco parou e ficamos imóveis por alguns segundos.

— Porque paramos? — Elisa perguntou ao nosso condutor.

— Estou fazendo o meu trabalho.

O QUE?! Com a gente lá dentro?! Ele não podia esperar a gente descer? É claro que não!

Um barulho na superfície da água fez o meu estômago embrulhar. Me virei de costas para não ver. O barqueiro tirou algo do mar com o remo. O barulho molhado e nauseabundo do morto sendo rolando para dentro da balsa ficou gravado no meu subconsciente. Isso aconteceu mais vezes enquanto o barqueiro ia fazendo o seu trabalho de coleta.

Eu lutava para afastar a imagem que nem sequer tinha visto, mas teimava em imaginar na cabeça: a pilha de corpos decompostos sobre o chão da barca.

— É aqui. — falou a voz assombrada.

Nossos pés tocaram a superfície da água e a balsa começou a se afastar. À nossa volta, diversas rochas se erguiam do mar. A melodia doce surgiu fragmentos de segundo antes de uma sereia se deitar preguiçosamente sobre uma das pedras. Morena de escamas azul turquesa. Outras se juntaram ao coro e a sedução das voz delas aumentou.

Elisa começou a soprar a flauta-de-pã, presente de Siringe. Eu estava rezando para que funcionasse.

Subitamente elas se calaram. As sereias se acomodaram sobre as rochas, atraídas pela música mágica. Enfeitiçadas, adormeceram ao som da doce flauta de caniço.

Comecei a ver lampejos de cor ao meu redor, na névoa fraca e translúcida. Peixinhos coloridos começaram a ganhar forma, circulando no ar. O corpo límpido e semitransparente como o próprio nevoeiro. Quando batiam em nossos corpos se desfaziam em partículas, só para se fundirem mais à frente.

Primeiro uma silhueta, meio peixe, meio mulher, depois a própria criatura. Os meus olhos captaram a coroa de corais que crescia emaranhada em seus cabelos esvoaçantes, como se realmente estivessem em baixo d'água. Ela nadou à nossa volta, analisando os invasores recém-chegados. Um mini polvo lhe envolvia o pulso como uma joia.

Ela era muda.

Curiosa com o súbito adormecimento de suas criaturas, ela voltou sua atenção para Elisa, que continuava tocando o instrumento ao qual ela era imune. Ela soprou e uma névoa densa navegou em direção ao instrumento. A nuvem se concentrou nas aberturas da flauta, de forma tão densa que começou a entupi-la com água à medida em que as partículas se condensavam. O som começou a falhar. As sereias ao redor começaram a espreguiçar.

Eu peguei o espelho da mochila e comecei a movimentá-lo. A luz refletiu e o brilho fisgou a sereia. Vendo a própria beleza no reflexo, ela se esqueceu de Elisa e nadou até mim. O instrumento voltou a soar.

Penteando os cabelos com os dedos, a criatura se movia encantada para onde o espelho a levava.

— Nós trouxemos um presente. — coloquei o espelho dentro de um pote de vidro e o empurrei na direção da criatura etérea.

Observávamos a cena com a visão periférica, olhar nos olhos dela seria a morte. A sereia pairou acima do recipiente, vendo o seu rosto no fundo e abriu um sorriso. De forma diáfana a sereia das brumas foi entrando no vidro, magneticamente atraída pelo espelho. Quando percebeu as paredes transparentes aprisionando-a, tampei o recipiente.

Gael não podia voar, então pegou a flauta de caniços e começou a soprar. Elisa alçou voo, tentando ver acima do nevoeiro em qual direção ficava a praia. Seguindo suas orientações, começamos a andar.

Eu olhei o vidro, a sereia estava aos prantos, desesperada e em pânico. Uma sereia capturada se transformava em espuma em poucas horas. As lágrimas ali vertidas eram o líquido enfeitiçado que poderia convencer qualquer um a fazer qualquer coisa.

Alcançamos a margem da praia. Foi mais fácil do que eu esperava. Abri a tampa do vidro. A criatura saiu furiosa. O frasco cheio de lágrimas ficou na minha mão.

— Nós pedimos desculpas e esperamos que isso possa compensar pelo mal que lhe causamos. — Elisa colocou o espelho e uma escova de cabelos de prata sobre uma folha e empurrou os presentes.

A sereia fez um movimento de convite e o barquinho navegou em direção a ela. Ambos se perderam em meio às brumas. Nós ficamos lá, apenas respirando. Nos entreolhamos com cuidado. Sorrisos querendo escapar.

— Conseguimos? — Elisa perguntou meio desconfiada.

— Acho que sim. — respondi no mesmo tom. Nós duas olhamos para Gael.

— Foi só isso? — ele franziu as sobrancelhas. Encarou as brumas silenciosas à sua frente. — É. Acho que conseguimos. — a voz dele expressou um pouco mais de confiança.

Elisa e eu começamos a saltitar para fora da água gelada rindo em gargalhadas. Os meus pés estavam começando a ficar com câimbras.

— Conseguimos! Conseguimos!

Sentamos os três ao redor do fogo. Gael deu uma olhada na direção do mar, mas relaxou e abriu um sorriso largo. Eu peguei o mineral esponjoso, joguei dentro do frasco e ele absorveu todo o líquido. Guardei-o dentro de um saquinho, e enfiei bem no fundo da mochila. Agora era só chegar ao vilarejo e enfiar o líquido do mineral goela abaixo do governante.

Pois é. Plano perfeito. O único problema, meus caros leitores, é que depois de enganar e ludibriar uma sereia em sua própria casa, ela poderia se tornar, ligeiramente, vingativa.

 O único problema, meus caros leitores, é que depois de enganar e ludibriar uma sereia em sua própria casa, ela poderia se tornar, ligeiramente, vingativa

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Olá, ola! Está quase acabando! Espero que estejam se divertido com essa aventura. 

Semana que vem tem mais. Bjos!

Doce Pecado | 1Onde as histórias ganham vida. Descobre agora