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Avisto um telhado dentro do campo e começo a caminhar até lá, sei que nessa região ainda não tem tantos Selvagens, mas aqueles de ontem foram mais que suficiente pra eu tomar todo cuidado agora, ainda mais com a criaturinha comigo. Assim que entramos no matagal ouço um ofegar e as mãozinhas apertam meu braço, encontro seu olhar lilás e sorrio. Abaixo-me e arranco um fio do mato e entrego a ela não suportando seus olhinhos confusos a tudo novo que aparece.

Ela pega da minha mão e fica encarando, depois leva a boca me fazendo segurar sua mão.

— Sério que você vai comer tudo que pegar? — Seus olhos sobem pra mim e eu me levanto. — Vou arrumar comida pra você, vamos — ela comprime a boca e toca sua barriga, levanto as sobrancelhas surpreso. — Fome? — A garota abre a boca e solta só alguns balbucios que mais parecem gemidos tristes. Não me aguento e sento em meus calcanhares, mesmo assim ainda fico pouca coisa mais baixo que ela. — Comida? Fala pra mim, criaturinha. Está com fome? — Ela toca minha boca e abre a dela de novo e depois arregala os olhos. Então faz uma carinha frustrada me fazendo sorrir e acariciar seu cabelo colorido. — Depois tentamos outra vez, venha — levanto e caminho novamente na direção da casa.

O sol ainda está forte no céu queimando minha pele, chego na porta da casinha simples e empurro a porta com força. Espero pra escutar algum coisa mas nada vem, se tivessem Selvagens eles teriam se agitado pela luz entrando na casa. Não quero arriscar de qualquer forma, então firmo a mão no facão e olho pra garota a segurando atrás de mim. Entro na casa fedendo a poeira, mofo e tempo, a criaturinha espirra e se agarra em mim. Passo a mão por sua cabeça e sorrio pra que ela fique calma, então continuo andando. Não há pegadas na extrema camada de poeira no chão, mas mesmo assim não relaxo. Entro no que um dia foi a cozinha e só encontro sujeira e coisas quebradas, o pedaço da pia na parede, a geladeira caída no chão e os armários abertos denunciando a confusão do começo da pandemia - ou apocalipse como muitos chamam. Caminho pra fora segurando firmemente a Algodão-doce comigo e olho na sala que um dia reuniu uma família, mas agora reúne poeira e movo. Novamente a criaturinha espirra e solta uma exclamação me apertando, mas não posso me distrair agora. Olho para as poltronas caídas e os porta-retratos quebrados no chão onde um dia tiveram uma fotografia visível. Respiro fundo olhando a escada, hora de subir.

Os degraus vão rangendo fazendo as mãozinhas dela apertarem minha blusa, eu acaricio suas costas. Um corredor nos espera no final da escadaria. Abro a primeira porta e encontro uma sala que talvez tenha sido um escritório, tem uma mesa quebrada e poltronas caídas. O sol ilumina o quarto me deixando mais tranquilo, entro na porta seguinte; um quarto de solteiro. Apenas uma cama e uma estante, tudo bagunçado e empoeirado. Na outra porta ao lado do escritório é o quarto de casal, o sol que entra pela janela fechada também ilumina o quarto todo. Na porta da frente é um quarto de criança, todo colorido e repleto de brinquedos sujos e empoeirados, um berço no centro e uma estante que um dia talvez fora branca. Abro a cortina iluminando o local e respiro fundo, tudo certo.

— Fique aqui, ta bom? — Seguro seus ombros e a coloco sentada na poltrona do lugar. — Eu já volto — aviso falando calmamente. Dou dois passos pra trás e ela levanta me seguindo. — Não, criaturinha... — respiro fundo. — Você precisa ficar aqui — aponto a poltrona. Ela olha e depois me olha assustada.

Ajoelho-me na sua frente e torno a respirar fundo, seguro meu cabelo e formo um coque no topo da minha cabeça. Ele já está batendo no início do meu ombro, com tudo o que aconteceu, faz anos que não o corto. Nos primeiros anos eu ainda me dava ao trabalho de me preocupar com isso, agora não mais. Acabei por me habituar ao cabelo e barba compridos como nunca tive antes. A menina senta de novo na poltrona e eu assinto sorrindo.

— Isso mesmo, eu já volto — levanto e ando até a porta, paro e vejo que ela continua sentada me olhando. Seus olhinhos estão arregalados e agora a cor azul é a que domina.

Projeto Ankh - Nova Era [1°história]. Where stories live. Discover now