Capítulo 9

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Os olhos estavam fechadinhos, o rosto ganhava feições diferentes a cada nota mais aguda da música, as mãos dançavam pelo ar e o rouco da voz preenchia todo o ambiente. Ela era um espetáculo à parte, era impossível deixar de assisti-la, os meus dedos estavam dedilhando no automático enquanto eu estava perdida entre os sentimentos que parecia transbordar dela.

- Essa passou a ser minha música favorita – disse após me recompor do transe em que eu estava – esquece mestrado, esquece tudo... tu tem que viver de música.

- Não – ela falou entre sorrisos – eu gosto de música, gosto mesmo, mas prefiro deixar só para as horas vagas.

- Então porque biologia, bióloga?

- Porque medicina, Ninha? – ela adorava me lançar perguntas como resposta.

- A ideia de cuidar das pessoas me faz bem, cuidar da vida entende? – Eu poderia dissertar sobre o porquê da medicina para a minha vida mas preferi um resposta curta, longe de mim entediar a menina.

- Faço da sua resposta a minha, porém o meu conceito de cuidar da vida é bem mais amplo, tem umas árvores e animais pelo meio.

- E aí você resolveu se enfiar em um laboratório?

- O cheiro de álcool faz qualquer um feliz.

Não aguentei e gargalhei, porém isso não foi suficiente para disfarçar o ronco altíssimo que a minha barriga resolveu dar para mostrar que eu estava morta de fome.

- Tu tá morta de fome né?

- Eu? Não! Imagina...

- Eu conheço um lugar bom e barato, bora?

- Você não tá falando do restaurante da universidade não né?

- Não seria má ideia, mas hoje é domingo e tá fechado – ela levantou em um pulo e me estendeu a mão para que eu levantasse também - prometo que o nosso próximo jantar será lá, não fica triste viu?

- Estamos evoluindo de almoço para jantar, acho que as coisas estão ficando sérias – falei brincando mas me arrependi, eu e essas manias de flertar sem saber que estou flertando.

- Esse deve ser o nosso terceiro encontro, segundo almoço – ela se virou pra mim enquanto eu trancava a porta – espero que no quarto com um jantar o segundo beijo saia. - Meus olhos quase caíram das orbitas oculares e minhas bochechas esquentaram tanto que já estava sentindo o calor se espalhando para o meu pescoço. - Calma Ninha, tô brincando.

Eu não consegui falar mais nada, coloquei a chave na bolsa e segui Vitória de cabeça baixa como se não soubesse o caminho até a portaria do meu prédio.

- A gente vai andando? – perguntei quando ela saiu a minha frente andando pela rua.

- Vamos sim, é aqui pertinho.

O caminho foi extremamente silencioso, eu tentava formular frases na minha cabeça a todo momento na tentativa de puxar assunto, mas ela falando da possibilidade do segundo beijo não saia da minha mente, não que eu já estivesse enterrado esse assunto, eu só não queria voltar no tempo, não tão rápido. O fato é que aquilo não deveria ter acontecido, mas aconteceu, e colocar uma pedra naquele assunto era o que eu mais queria.

Quando chegamos no lugar que Vitória sugeriu eu percebi que já frequentava o estabelecimento há um tempo, e realmente era bom e barato. Era uma cantina bem simples, porém a sensação de estar em casa era maravilhosa, por pouco eu não era capaz de ouvir minha irmã gritando meu nome. Como todo o percurso eu entrei atrás de Vitória, sentamos em uma mesa afastada e logo a dona Tereza veio falar qual seria o prato do dia, mas eu quis uma lasanha, Vitória quis umas folhas estranhas.

- Ana, eu pensei que não estávamos em um clima estranho - Vitória cortou o silêncio abruptamente, eu olhei para ela no mesmo instante.

- Não estávamos, você que estragou esses últimos 20 minutos.

- Porque eu falei do beijo? – fiquei em silêncio – qual o problema?

- Foi a tequila – respondi rapidamente - você não deveria lembrar.

- Eu não costumo esquecer esse tipo de coisa.

- Eu sou hétero – respondi quase desesperada.

- E? – O rosto dela se transformou em um ponto de interrogação.

- Não deveria ter acontecido – eu já estava falando alto demais.

- Foi só um beijo Ana, calma.

E dona Maria voltou com os nossos pratos, o silencio voltou com toda força ficando presente até o término da refeição.

Eu comi totalmente no automático, na verdade quase nem comi, a vontade de sair correndo daquele ambiente aumentava a cada segundo, e aos poucos eu fui me dando conta do papel que fiz. Meu Deus Ana Clara como tu pode ser assim? Minha cabeça martelava na tentativa de entender minha reação aos questionamentos de Vitória, porque eu estava tanto na defensiva?

- Açaí? – Sim, eu precisava contornar aquela situação.

- Acho melhor voltarmos para casa – Vitória parecia responder sem vontade.

- Bora mulher, nem precisa comer, eu como por nós duas – pude ver um sorriso crescendo no rosto dela.

- E do que adianta eu ir?

- Pra me fazer companhia ora – Vitória balançou a cabeça em negação.

- Tu é muito bipolar Ana.

Eu já estava me esbaldando com um pote de açaí enquanto Vitória comia o dela tão sem vontade quanto o almoço de minutos atrás, o nosso olhar era perdido, ela olhava para umas crianças brincando com sorvete, eu acho, enquanto eu tentava disfarçar olhando os sabores no menu.

- Eu gostei do beijo – Ela falou em um sussurro sem me olhar.

- Eu também – falei da mesma forma, em um sussurro e sem olhar para mulher a minha frente – quer dizer, eu acho - Pelo amor de Deus Ana Clara, o que tu tá falando?

- Meu Deus mulher, tu é muito indecisa – ergui meu olhar e Vitória já direcionava o seu pra mim, porém o sorriso que ele trazia era de tirar o fôlego.

- Sou libriana – falei inocentemente, como se não fosse minha culpa.

- Como não pensei nisso antes Ana Clara?

- Como se tu não fosse do mesmo jeito né senhorita Vitória, tem hora que tu tá com esse sorriso que ilumina mais que o sol e no outro você tá com uma cara fechada pensando na morte da bezerra. – Ela parecia indignada com o que eu tinha acabado de falar.

- Tua culpa.

- Minha nada, nem comer açaí tu queria! Como conversar com uma pessoa que recusa açaí?

- Tu nem conversar comigo queria Ana Clara.

- Ninha.

Ela retirou o celular da bolsa e ficou um tempo olhando para a tela.

- Preciso ir pra casa Ana Clara.

- Podemos ir para a minha.

- Não posso, Flavi precisa de mim.

- Há sim – me vi triste pela negação de Vitória ao meu convite. Ela levantou e me deu um beijo no rosto.

- Desculpa te deixar aqui, é realmente uma emergência.

- Eu ainda te vejo antes de você viajar? - Perguntei esperançosa.

- Você ainda me deve um beijo, esqueceu?

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