20 - Até aquele instante

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No sé tú
Pero yo te he comenzado a extrañar
En mi almohada no te dejo de pensar
Con las gentes, mis amigos
En las calles, sin testigos
No sé tú - Luis Miguel

***
Apesar de estar ao lado de Victoria há tantos anos e conhecê-la muito bem, Antonieta ainda conseguia se surpreender com o modo prático como ela encarava a vida e, sobretudo, as relações. Contudo, apesar de não ter nenhum problema em criticá-la, sabia que, se Victoria tomava uma decisão, era jogar palavras ao vento tentar convencê-la. Mas era uma verdadeira amiga.

O que você está olhando? — Indagou Victoria incomodada com o olhar de sua amiga sobre ela. Sabia que Antonieta a estava julgando. — Você realmente esperava algo diferente de mim?

Não. Eu não esperava algo diferente de você. — Respondeu Antonieta sincera. — Mas eu acho que você não está sendo sincera com você mesma. No fundo é exatamente esse o motivo para que você faça isso. No fundo você tem medo de que Heriberto volte a te deixar e você quer fazê-lo primeiro! — Analisou Antonieta.

Victoria se incomodou de que, pela segunda vez em menos de vinte e quatro horas escutava que ela sentia medo. E isso não era verdade, mas ainda que fosse, jamais deveria ser demonstrado para ninguém.

Eu não sei de onde você tirou tantas bobagens!

Do seu comportamento! — Rebateu Antonieta. — Mas não deixa de me surpreender. Victoria você ficou anos numa relação fria e pragmática com Osvaldo da qual você não conseguia extrair nada de positivo e nunca se mexeu para separar-se dele até flagrá-lo naquela traição. Agora...

Fria e pragmática. — Repetiu Victoria sarcástica para se defender do incômodo que sentiu com a crítica. — Você realmente vai querer comparar Heriberto com Osvaldo Antonieta? — Ela perguntou impaciente.

Não, Victoria. É você. É você quem eu estou comparando. Porque a alguém como Osvaldo você deu a chave de sua vida e de um homem como Heriberto você foge? Se permita sonhar, Victoria. No fundo dessa couraça implacável você é uma mulher de carne e osso e Heriberto te recorda isso.

Você realmente não me conhece ou talvez seja ingênua demais, Antonieta. — Victoria não se preocupou em ser ríspida com sua amiga. — Osvaldo nunca teve a chave da minha vida e é exatamente por isso que eu aceitei me casar e tive uma filha sua, assim como quis me tornar mãe do filho dele.

E por que, segundo você, eu estaria sendo ingênua?

Porque eu posso ver nos seus olhos que você está idealizando me ver como uma idiota romântica apaixonada.

A idiota é por sua conta, mas apaixonada... Victoria, você não pode evitar. Você não acha que vai sofrer se for para Miami e deixá-lo plantado depois do que vocês viveram? — Insistiu Antonieta romântica.

Depois do que vivemos não, ainda temos dez dias para viver tudo isso e, depois... Depois seguirei sendo a mesma pessoa de sempre. — Victoria falou de maneira tão fria que deixou Antonieta perplexa.

Victoria... — Advertiu Antonieta em choque. — Esse homem vai te odiar.

Que me odeiem jamais foi um problema para mim! — Encerrou Victoria levantando-se. — Agora vá trabalhar! Preciso que você organize todos os detalhes da viagem para Miami, você sabe que eu só confio em você. Quero tudo pronto antes do prazo. Nada pode impedir que essa viagem ocorra na data delimitada!

***
Depois do fim dessa conversa que, apesar de se defender muito bem deixou Victoria pensativa, ela voltou a se concentrar no trabalho que era o que fazia de melhor. Apesar de sentir ainda um leve desconforto na mão direita depois do acidente, estava intensamente inspirada e rascunhou vários modelos entre os quais pretendia selecionar os melhores para o desfile de Miami. Depois do lançamento do catálogo anual da Casa de Modas, aquele seria o evento mais importante do ano para sua marca e ela estava extremamente empolgada com a visibilidade.

Entretanto, com o passar das horas começou a sentir uma extrema inquietação pela ausência de uma ligação de Heriberto. Sim! Apesar de negar, ela a esperava com todas as ânsias possíveis. Descontroladamente sentiu um peso sobre o peito ao imaginar que Heriberto não a procuraria por interferência de Ana Joaquina, afinal, a visita daquela mulher a seu ateliê não havia lhe deixado dúvidas de que ela continuava ambicionando afastar Heriberto dela como já havia feito um dia.

E bastou esse pensamento inconsciente para Victoria, debatendo-se entre suas incertezas e convicções, voltar a desesperar-se para se afastar de Heriberto. Definitivamente, nada podia dar errado porque aquela viagem era o único trunfo que ela tinha para se defender do quanto ele a tornava frágil. E frágil era uma palavra que ela odiava proferir e, ainda mais sentir. A pressão se fez tão forte que, ao fim do dia, ela estava a ponto de chorar distraída entre seus croquis para os quais não tinha mais inspiração quando foi interrompida pela voz agitada de Pipino.

Rainha! — Gritou ele ao entrar na sala dela. — Olha só o Deus grego que eu encontrei te procurando na recepção.

Era Heriberto. Aquele sorriso que ele abriu por causa dos comentários de Pipino deixou Victoria ainda mais afetada. Ela não conseguia aceitar que existisse uma pessoa capaz de evidenciar tão claramente seus pontos fracos. Ou melhor, que ele próprio fosse um combinado de todos aqueles pontos fracos. Pipino ainda ficou ali por uns dois minutos fazendo seus comentários divertidos antes de se retirar e deixá-los sozinhos. Victoria o olhou com um olhar recriminador como se não fosse ela quem escondesse algo tão importante dele.

Eu ia te ligar, mas tive um imprevisto e não pude ir em casa pela manhã. Tinha alguns pacientes no início da tarde e acabou ficando difícil. Desculpe. — Explicou ele notando o mau humor dela.

Victoria deu de ombros e voltou a concentrar sua atenção nos croquis que, efetivamente, ela não modificava há horas. Heriberto, então, se aproximou e sentou-se ao lado dela tornando quase impossível o empenho de Victoria em não olhá-lo.

Você realmente não entendeu. Eu já te deixei muito claro que não queria assuntos pessoais no meu trabalho. Não sei porque você pensa que eu esperava uma ligação sua. — Victoria mentiu olhando diretamente nos olhos dele. Uma habilidade que só uma mulher como ela podia possuir.

Na verdade... você não deixou tão claro assim ontem. — Gabou-se ele irritando-a ainda mais.

Ela segurou o lápis com mais força e começou a rabiscar o papel sobre a mesa para fugir da perturbação que lhe causava Heriberto quando deu um leve gemido soltando o lápis bufando.

Victoria... — Heriberto disse num tom preocupado. — Sua mão está muito inchada.

É uma bobagem, Heriberto... — Ela instintivamente segurou a mão com a esquerda, pois apesar de negar, a dor estava bastante incômoda.

Não, Victoria, você não vai discutir comigo. — Foi enfático. — Amanhã, à primeira hora eu te acompanho até o hospital e você vai, de uma vez por todas, fazer uma radiografia e outros exames nessa mão. Você tem ideia de que uma lesão aí pode ter consequências catastróficas para seu trabalho?

Victoria levantou os olhos e encarou os de Heriberto. Seu tom e seu olhar preocupado comoveram-na de uma maneira que ela não pôde evitar sentir-se cuidada e protegida por ele. Só nesse momento é que Victoria se deu conta de que ninguém jamais a havia protegido. Até aquele instante.

***

Estranha SensaçãoWhere stories live. Discover now