Hora 0.

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 Rafaella atendeu o telefone enquanto colocava o sal na água para cozinhar a batata, experimentava mais uma receita que havia achado no antigo livro de receitas da avó, quem visse de fora teria a certeza que ela havia saído de uma revista, seus longos cabelos de mel caiam em ondas no rabo de cavalo, a blusa branca dentro do shorts perfeitamente passados de moletom cinza as longas pernas de fora e ao fundo uma leve música tocando, pausou-a pelo seu celular e atendeu ao telefone sabendo quem era.
  Junior sempre ligava esse horário no penúltimo dia do mês, era o dia em que ele avisava o que precisava que sua mãe levasse no almoço em família, Junior estudava em uma faculdade em outra cidade, levava três horas de carro para chegar lá, basicamente o maior tempo que ela ficava sozinha com João, seu marido, que não fosse nos jantares e quando iam dormir.
-Mãe, além disso tudo eu gostaria de pedir uma coisa se não for muito. Rafaella estranhou a forma como seu filho falou, quase em um sussurro, mas não mostrou. -Tem uma menina na minha sala não nos falamos muito, mas ela é minha parceira de trabalho e ela também é dai o aniversário dela é amanhã e os pais dela também vão vir.
-A que legal meu filho, mas o que você vai querer?
-Bom ela disse que os pais se separaram e a mãe está sem carro, se não for pedir muito poderia dar uma carona para ela? Sabe como é, os pais dela não iriam sobreviver a uma viagem de carro tão longa.
-Você quer que eu dê carona para uma desconhecida? Onde foi que eu errei com seus ensinamentos Junior?
-Ela não é uma total desconhecida mãe, o nome dela é Gizelly, mora a meia hora de você e além do mais, o que aconteceu com o ajudar aos necessitados? Rafaella sorriu, havia criado muito bem seu filho.
 Acabou aceitando conversaram sobre amenidades e as aulas antes que Junior tivesse que correr para a aula, como sempre atrasado, havia puxado isso de seu pai João. Rafaella terminou de cozinhar bebeu uma taça ou um pouco mais de vinho, guardou o conteúdo do almoço todo em algumas travessas e deixou na geladeira.
  Era sexta-feira, normalmente João saia com os amigos depois do trabalho era dia de futebol e pôquer, ele chegaria somente de madrugada o que para Rafaella significava uma noite tranquila na banheira com seu vinho e alguma comedia romântica na televisão, talvez uma pipoca e se alguma coisa surgisse em sua mente seriam horas incontáveis atrás do notebook escrevendo mais um capítulo de como ser a perfeita dona de casa com um filho na faculdade.
 Mas hoje era um dia em que a inspiração não veio e pela primeira vez sentiu o vazio da noite de sexta-feira em uma casa vazia, durante 18 anos por mais que em algumas vezes no mês fosse a noite do futebol, sempre tivera João e Junior ao seu lado, por alguns anos brincavam de construir um forte na sala e assistir aos desenhos preferidos do filho, então Junior cresceu e aproveitavam a sexta como a noite do papai e mamãe enquanto o filho estava em qualquer festa, então veio o início de toda sexta ser de futebol, veio a primeira vez que Junior veio para casa bêbado e então Rafaella esperava todas as sextas com um doce curador de ressaca, sentava com o filho na cama esperando-o ficar sóbrio, muitas das vezes apenas sentava e o observava dormir até que João chegasse em casa.
  Mas então Junior foi para a faculdade em outra cidade e as noites de sexta-feira foram ficando cada vez mais solitárias, mesmo que ela nunca tivesse sentido-as, hoje era a primeira vez.   Quando percebeu havia bebido toda a garrafa do vinho e já estava no final da segunda, seus sentidos estavam enrolados e seus pés não seguiam uma linha reta, resolveu que seria essa uma boa hora para ir dormir, colocou sua camisola de seda rosa e deitou na cama assistindo a algum filme onde dormiu no meio da primeira frase.
  Não viu João chegar, não ouviu o despertador, mas sentiu seu marido a cutucando, havia preparado café da manhã algumas frutas e uma taça grande com o mousse de chocolate branco que Rafaella havia preparado novamente para testar, ao lado disso tudo havia uma cartela de Advil.
-Bom dia meu anjo.
-Bom dia.
-Como foi sua noite? João deu um sorriso, mostrando que sabia sobre as duas garrafas de vinho.
-Exagerei um pouco, mas já estou bem, só um pouco de dor de cabeça.
-Meu anjo seria essa uma boa hora para cancelarmos com o Junior. Vou precisar ir trabalhar hoje, não poderei ir e como você está de ressaca...
-Como assim você não vai?
-Eu preciso trabalhar.
-Mas é o seu filho João.
-Eu sei, mas...
-Nós só nos juntamos todos uma vez por mês e você não vai tirar um misero dia para ir ver o seu filho?
-Ele vai entender, meu anjo.
-Não, não me venha com meu anjo agora. Você terá que se explicar sozinho para ele, mas eu continuarei com a minha promessa.
 Rafaella levanta da cama deixando João massageando a têmpora sozinho na cama enquanto tomava banho pegou o celular e viu o número da tal de Gizelly que Junior queria que ela desse carona, havia se arrependido de ter que passar o caminho com uma mulher que não conhecia, mas não podia fazer mais nada, não agora.
 Resolveu mandar mensagem para a mulher antes de sair, "Olá aqui é Rafaelle, mãe do Junior amigo da Julia. Estou no banho mas dentro de uma hora estarei ai." Apertou o botão de enviar prendeu o cabelo e tomou uma ducha rápida, não queria ficar muito tempo na casa com João, entendia que o trabalho era importante, mas jamais trocaria o único dia que tinha para ver o filho por isso.
  Sua ressaca havia diminuído quando saiu do banho, colocou uma roupa confortável para dirigir e arrumou a mala que Junior havia pedido, algumas roupas que havia deixado para trás, uns jogos que achou que não iria querer, um livro que precisa ler para a aula...
  Preparou o porta-malas e deixou a bolsa térmica no banco de trás com as comidas que levaria para ele e algumas garrafas d'água, não se despediu de João e quando viu estava na metade do caminho para a casa da mãe de Julia.
  A casa era pequena e aconchegante diferente da sua enorme casa branca e moderna, João era arquiteto, sua casa era enorme e muito bem planejada, mas a casa que estacionara na frente era o que considerava um lar.
 Era pequena e com telhado de tijolos, amarela com um balanço na varanda um fusca estava parado na garagem parecia em perfeito estado, Rafaella buzinou duas vezes e esperou por alguma movimentação, mudou a estação de rádio procurando por alguma música que gostasse e antes que pudesse achar a porta da frente se abriu, uma mulher baixa com os cabelos louros escuro saiu, parecia que havia acabado de sair da praia o corpo bronzeado em um vestido florido que mostrava suas pernas e braços torneados, trazia uma mala de rodinhas e parecia que andava em câmera lenta. Rafaella sentiu um pequeno nó no estomago e a boca ressecada, sua ressaca parecia estar ainda bem presente.
 E ela era linda, linda a ponto de Rafaella não conseguir piscar. Linda a ponto de Rafaella não saber o que fazer. Linda a ponto de Rafaella...
-Oi, você é minha carona?
-Sim... Rafaella acordou do transe ao ver aquele sorriso em sua janela.
–Tem espaço atrás? Gizelly esperou no silêncio, -No porta mala
-Ah, sim deixa que eu ajudo.
-Não precisa, é só abrir eu jogo e a gente coloca o pé na estrada. Mal vejo a hora de ver meu bebê.
 Rafaella apertou o botão que destravava o porta-malas, enquanto Gizelly dava a volta Rafaella a seguiu pelo retrovisor, pegou uma de suas garrafas d'água e virou tudo praticamente um gole enquanto seguia Gizelly sentar ao seu lado, colocar o cinto de segurança.
-Prazer, Gi. Ela esticou a mão para Rafaella que apertou timidamente.
-Rafaella, mãe do Junior.
-Não. Não aceito. Disse Gi deixando uma Rafaella confusa encarando-a.
-Desculpa, mas o que você não aceita.
-Essa coisa toda de "mãe do Junior" mulher você é mais do que mãe. Você é Rafa... alguma coisa.
 Rafa não entendeu o raciocínio dela, talvez estivesse cedo demais para que ela pudesse fazer algum sentido, algumas pessoas simplesmente não faziam sentido antes das dez horas da manhã. Talvez Gi fosse uma dessas. Rafaella saiu com o carro em direção da estrada 20, seria um longo caminho.
  Meia hora havia passado desde que Gi entrara no carro e falara pela última vez, um silêncio estava instalado se não fosse pela música no fundo. Rafaella olhou para o céu preocupada.
-Parece que vai chover. Gizelly se pendurou para fora da janela olhando para o céu.
-Acho que conseguimos chegar antes da chuva.
-Sabe, eu acho que eu já te vi.
-Eu?
-Sim, você é um pouco famosa não é?
-Na verdade sim, eu escrevi alguns livros..
-Sim, isso. Gizelly pensou um pouco enquanto apoiava os pés nos porta-luvas. –Algo sobre...Como ser uma boa mãe ou algo sobre receitas?
-Na verdade, os dois... No primeiro livro sobre as dificuldades da maternidade e no outro eu fiz um livro de receitas simples para quem tem pouco tempo. Rafaella sorriu olhando para frente.
-Você foi mãe solteira também?
-Eu? Rafaella perguntou sem entender rindo de nervoso. –Deus não! Sou muito bem casada com o pai do Junior, ele é um arquiteto e somos um ótimo casal.
-Mas você trabalhou fora então?
-Não desde que o Junior nasceu eu me dediquei totalmente para ele.
-Ah; entendi então. O tom irônico de Gizelly fez com que Rafaella a encarasse.
-Entendeu o que exatamente?
-Que seu livro é uma farsa na verdade. Você não teve problemas de maternidade como uma mãe de verdade, não precisou fazer comidas rapidamente pois estava atrasada para sair para o trabalho e não tinha com quem deixar sua filha, já que seu marido te largou com uma criança pequena... Foi isso que eu entendi.
-Não é só porque eu não fui mãe solteira que não significa que eu não tenha tido problemas na maternidade... Rafaella respirou fundo antes de voltar a falar –E foi pensando nas mães solteiras que fiz o livro de receitas, pensei nessas mães que não tiveram a mesma vida que eu que tem que correr pra fazer comida... Mas pense o que quiser Gizelly.
 "Quem essa mulher pensa que é? Julgando sem saber... vai ser uma longa viagem."

  O silêncio era palpável e constrangedor. Gizelly respirava profundamente de um lado enquanto Rafaella, tentava prestar atenção na estrada, uma chuva fina demais havia começado a cair e ainda faltavam quase duas horas até a faculdade das crianças. O para-brisas trabalhava de uma forma incansável, mas estava começando a não fazer muito efeito deixando Rafaella preocupada.
 Um toque baixo vinha de trás do banco levou um tempo para que Rafaella percebesse o que era.
-Meu celular, você poderia pegar para mim? Gizelly se curvou para o banco de trás para pega-lo, descuidada deixando o vestido subir e pelo retrovisor Rafaella viu a bunda de Gizelly, sentiu todo seu corpo queimar em vergonha, mas por algum motivo não conseguia parar de olhar para ela.
 A calcinha fio-dental branca no contraste daquela pele queimada de sol, a bunda firme sem uma celulite aparente daquele ângulo... Rafaella não conseguia prestar atenção na estrada, não conseguia desviar o olhar..
-É o seu filho, quer que coloque no viva-voz? Gizelly falou tirando-a do transe e voltando para o banco da frente.
-Quê?
-Seu filho.
-Ah, sim, por favor.

-Mãe?
-Filho, como você está?

-Bem, estou aqui com a Julia.
-Quem?
-Minha filha. Gizelly sussurrou.
-Ah sim. Você está no viva-voz estou aqui com a mãe dela.
-Mãe? Uma voz feminina chamou.
-Feliz aniversário minha princesa.
-Obrigada mãe, onde vocês estão? Gizelly olhou para Rafaella.
-Hum, estamos na estrada ainda, começou a chover então talvez nos atrasaremos um pouco.

-Vocês já saíram. Droga. Junior falou.

-Ligamos para justamente falar para não virem, começou a chover muito forte aqui, eles estão fechando algumas estradas... Talvez não dê para vocês chegarem.

-Mas como já saíram talvez consigam chegar Ju.

-Ainda não está forte talvez só esteja ai mesmo, mas é como eu disse, talvez iremos nos atrasar.

-Tudo bem. O papai já chegou, na verdade veio ontem à noite e foi embora antes da chuva.
-Que bom minha filha. Gizelly revirou os olhos para Rafaella.

-Porque o pai não veio com você mãe? Ele mandou mensagem pedindo desculpas.
-Ele teve que trabalhar, sabe como seu pai é Junior.

-Eu sei... ãe... quando estiverem... liga... A ligação começou a cortar, Gizelly levantou o celularem busca de um sinal melhor, mas a ligação já havia caído. Não havia sinal algum e a chuva havia piorado.
-Talvez seja melhor parar um pouco.
-Estamos no meio do nada Rafaella.
-Eu sei, mas podemos encontrar um motel de estrada qualquer para esperar a chuva diminuir. É chuva de verão vai passar rápido. Enquanto tentava convence-la, avistou um pequeno motel de três andares, simples mas, parece limpo e organizado. –Tem um ali o que acha?
 Gizelly observou o tempo, sabia que o melhor a fazer era parar e esperar a chuva. Respirou fundo, queria ver a filha, mas queria chegar viva.
-Tudo bem, mas só enquanto esperamos a chuva passar, então de volta para a estrada.
-Sem problemas.
 Rafaella deu a seta e entrou no pequeno estacionamento, muitos carros estavam ali, por conta da chuva as duas pensaram ao observar aquilo, ambas questionaram se haveria quartos vagos.

One Day. (Girafa)Where stories live. Discover now