Hora 19

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Ver a estrada se formar nas ruas da cidade dava uma dor enorme, olhei para o lado e vi Gi quieta olhando para as casas que ficavam agora cada vez mais juntas quase como se jogasse na nossa cara "o tempo de vocês acabou, aceitem" minhas pernas falharam e eu perdi o controle do carro por um segundo, o que fez com ela que me olhasse em desespero. 
  Pedi desculpas e ela voltou a olhar para fora, o rádio estava desligado e o clima estava pesado por mais que estivesse uma temperatura agradável ali dentro eu suava frio, sentia cada gotinha cair nas minhas costas, sentia o caminho que fazia da minha nuca até encostar no cós da minha calça, será algo que eu comi ou será só o desespero de vê-la partir? Não posso vê-la partir não dessa forma.
"Por favor Gizelly, não me faça esperar" quis gritar no carro "Por favor Gizelly, decida-se agora!"  Mas eu engolia a minha voz "Por favor Gizelly!" Eu mordia minha língua.
Segurei com mais firmeza no volante, segurei minha boca fechada com tanta força que sentia meu maxilar doer.
-Tenho tanta coisa para resolver do trabalho quando chegar em casa. Soltei alguns barulhos como quem concorda.
Mas a verdade é que, não sei com o que concordo, apenas digo que sim, apenas finjo que sei.
Desde que sairá do hotel, meu celular não parará de tocar, era minha editora, meu agente, eram pessoas que eu precisava responder, incluindo minha irmã, mas... Me desliguei do mundo. "Tudo que me importa agora é ela, tudo o que vai me importar agora é ela."
Meu celular tocou novamente, era a quinta vez que ele tocava em menos de 10 minutos, Gi me olhou com o celular na mão.
-É sua agente, pode atender.
-Coloca no viva voz por favor? Ela colocou, meu carro aceitou a ligação por bluetooth e estremeci com a realidade da voz de Angela estridente demais.
-Você tá viva Rafaella?
-Estou, estou na estrada aconteceu alguma coisa?
-Aconteceu alguma coisa? Rafaella você é uma escritora famosa eu preciso saber onde você está o tempo inteiro, com quem você está e o que você está fazendo. Ela gritou.
  Eu garanto que ela dentre todas as pessoas não iria querer saber.
-Eu estava ocupada Angela, ainda estou na verdade, aconteceu algo?
-Claro que sim! Você não leu minhas mensagens ou usou sei lá, a internet nas últimas 24 horas?
-Não Angela. Apertei no meio dos meus olhos, sua voz era a última coisa que eu queria ouvir.
-Pois então saiba que eu sou uma ótima agente e você conseguiu aquele prêmio que tanto falamos.
-Ah.
-Ah?! É só isso que tem a me dizer Rafaella? Ah? Depois de eu passar meses fazendo a cabeça de todos, mostrando que você é perfeita com uma família perfeita mesmo que seu marido e filho não sejam da mesma religião que você?! Sabe como foi difícil convencer que eles não são desertores e você me diz "ah"?
-Sinto muito, mas eu estou ocupada agora não podemos falar agora, vou entrar em um túnel. Desliguei o celular antes que Angela pudesse falar algo.
-Uau, que prêmio é esse? Gi me assustou por um segundo havia me esquecido que ela estava ali.
-Não é nada demais. Dei de ombros.
-Me diz? Ela piscou os olhos e como eu diria não?
-Juro que não é nada demais é só um premio da editora.
-E o que tem sua familia nisso?
-É ai que está o problema, minha editora é conservadora e é um premio tecnicamente para ver quem de todos é o que mais segue a religião em que vive, sendo nomeado o melhor escritor de todas as regiões que a editora está sedeada.
-Uau. Gi falou me olhando. -E isso não é nada?
-Não mais, tenho coisas mais importantes para pensar agora.
-Rafaella é um prêmio que você ganhou por ser maravilhosa!
-Mas eu não vou aceitar.
-A sua agente disse que passou meses para conseguir para você.
-Eu sei, eu passei esses meses com ela também, moldando minha imagem e da minha familia.
-E você vai desisitir por ter "coisas mais importantes para pensar"?
-Sim.
-E o que são essas coisas? 
 Respirei fundo e cocei a sobrancelha.
-Gi deixa quieto.
-Não, sabe como eu queria poder ser reconhecida? Sabe quantas pessoas se matariam para estar no seu lugar?
-Gi, por favor.
-Não Rafa, me diz o que é tão importante assim para te desviar do dia para a noite de algo que quer a muitos meses?
-Você Gizelly. É em você que eu to pensando, merda.  Seu semblante desmoronou quando gritei.
-E o que eu tenho a ver com isso?
-Eu não vivo mais pela minha religião, não vivo mais pelo lema na editora. Bati no volante sentindo meus olhos esquentarem.
-Como... Como assim?
-Ai Gizelly não se faça de trouxa você entende bem do que estou falando. Eu não posso aceitar um premio por ser a perfeita mulher de Deus sendo que... Sendo que eu estou apaixonada pelo diabo, por você. É hipocrisia demais Gizelly.
 Ela ficou quieta, passei a mão no cabelo prendendo-o rapidamente sem deixar o carro sair da rua. Gi voltou a olhar para fora e senti o peso do que tudo aquilo siginificava e acho que ela também e quando voltou a me olhar seus olhos estavam perdidos.
-Mesmo que não tivesse você. Falei tentando ser doce. -Divórcio não é bem visto, não é só a homossexualidade Gi, claro que isso é muito pior para eles e eu não sei como vou poder continuar em algo assim. Eu estou em uma constante briga com o todo poderoso na minha mente por isso desde que te conheci. Como ele pode julgar e condenar alguém só por eu te amar? Como ele pode querer me machucar só por eu ter te conhecido... 
-Ele não julga nem condena ninguém, acredite eu já passei por isso Rafa. Gi sorriu pegando minha mão do volante e beijando. -Quem o faz são as pessoas e essas mesmas que julgam e condenam são infelizes seres que não aceitam a felicidade dos outros por não terem eles mesmo. 
-Mas como vou seguir assim? Não é como se eu fosse ser menos sincera em meus livros não é como se minhas receitas fossem parar de dar certo ou... 
-Rafa, não pense nisso. 
-Como não pensar se agora eu vou ter que aceitar um premio por algo que eu não sou.
-Você não é verdadeira em tudo o que você faz? Não tem sua religião e a segue da melhor forma que não desrespeita ninguém? Não ama sua familia mesmo que tenha que seguir caminhos separados com João?  Assenti, de fato era tudo verdade. -Então porque não Rafa?
 Sim... Porque não Rafa?
 -Mas é algo que ainda precisa ser visto com calma, ainda é algo que não estou confortavel em aceitar. 
-Mas promete pensar?
-Apenas se você prometer vir comigo.
-Rafa...
-Não é agora, na verdade eu não sei quando vai ter a premiação. 
-Tudo bem, vou pensar também.
-Vou marcar na agenda.
 Ali estava, o sorriso que achei que não iria receber. Um meio sorriso triste de quem não pensa no futuro,  de quem sabe que não vai cumprir a promessa que está fazendo, já havia visto esse olhar várias vezes, mas nos olhos dela me matavam, me destruiam e não sabia se eu poderia me recuperar disso. Não disso.
 As casas se tornavam familiares agora, mesmo que eu só tivesse passado por aqui uma vez, mas eu reconheci o cachorro passeando na coleira com a menina de tranças e reconheci as amigas fofocando e rindo sentadas na sombra da macieira. Reconheci o homem pegando a correspondência na caixa de correios.  Mesmo que eu não conhecesse nenhuma dessas pessoas, eu as reconhecia e iria lembra-las para o resto da vida como as ultimas pessoas que vi antes de tudo mudar. Eu reconheceria o latido do cachorro ao ver um gato passar em sua frente e a voz de um pai festejando ao ver a filha andar de bicicleta sem as roda auxiliares pela primeira vez.
 Ia me aproximando de sua casa e sentia o arrepio novamente, sentia as gotas de suor me descendo na espinha novamente, meu estomago doia de uma forma absurda, parecia que eu iria desmaiar ali. Mas me fingi forte ao parar o carro na frente da sua casa e me fingir forte ao ve-la encarar sua própria casa sem me olhar.
 Olhei para Gi respirando fundo parecia estar associando a realidade, senti meus olhos arderem e ela pegou em minha mão apertando com mais força ainda sem me olhar e eu agradeci pois seus olhos me matariam agora.
 Sabia que ela estava prestes a chorar pois eu estava prestes a chorar, desviei meu olhar dela e encarei os moradores indo de um lado ao outro reconhecendo-os sem conhecer, o rádio desligado só deixava o ar mais pesado e eu não queria que ela saisse do carro, se ela saisse faria tudo ser completamente real, real demais que doia e eu não queria que acabasse, sabia também que ela não queria que acabasse.
-Tenho que ir. Sua voz era pesada demais para ignorar.
-Não temos que ir agora. Falei.
-Se não formos agora Rafa, talvez eu não vá nunca mais e precisamos enfrentar isso.
 Em momento algum ela me olhou enquanto falava, apenas encarava sua casa, sua vida. Encarava sua vida sem mim. Mas eu não precisava ve-la para saber que ela chorava.
 Suas lágrimas caiam rápidas e aos montes, engoli as minhas por um segundo eu tinha que ser forte, um segundo por vez eu tinha que ser fote. 
 -Gi...
 Mas eu não sabia o que dizer. 
 O que havia para ser dito em uma hora dessas? 
-Não quero arrancar o bandaid. Ela disse do nada, ainda sem me olhar. -Dizem que se arrancar de uma vez dói menos, mas eu não quero arrancar de uma vez. 
 E então ela me olhou, sua boca era de um beicinho infantil, como um bebe que não quer ir dormir. E ela chorava. Chorava em silencio, mas seu corpo todo tremia e seu rosto todo estava molhado.
-Eu quero sentir cada segundo da dor Rafa. Quero sentir toda intensidade da dor, até o ponto insuportavel em que eu ache que ela vá me matar e eu sinceramente acho que vá Rafa. 
-Então fique, a gente foge para longe, aluga uma casa e moramos só nós duas, qualquer lugar do mundo e eu sou sua, Gi.
-Voce não tem noção do quanto eu quero isso Rafa. Ela riu acariciando minha bochecha. -Mas, eu tenho que ir. 
 Sua voz falhou, ela soluçava agora. Só mais um segundo que eu tenho que ser forte.
-Eu sei. Falei me segurando. Só. Mais. Um. Segundo.
-Ei. Ela sorriu por trás das lágrimas. -Um ano não é tanto tempo, é só levar um dia por vez.
-Um dia por vez. Concordei. 
 Um segundo por vez já estava dificil demais.
 Agora teria que viver um dia por vez.
 86400 segundos por vez.
 365 dias. 
 Mas nesse momento, é só mais um segundo.   
-Um dia por vez. Ela concordou, soltando o cinto de segurança.
-Um dia por vez. Deixei uma lágrima escapar. -Gi...
-Não, não fala nada. E eu obedeci. Eu não tinha nada para falar.
 E ela me beijou.
 Ali na porta da casa dela, casa que ela comprou com sua falecida esposa, que ela criou sua familia, que ela se desfez de um casamento abusivo e que ela casou novamente. 
 E eu a beijei de volta. 
 E eu não queria me separar dela, sua boca era como o inicio. E agora parecia como o inicio do fim.
-Feche os olhos e conte até cem. Ela sussurou em meu ouvido. -Vai ser mais fácil assim. 
-Mas eu quero te ver mais uma vez.
-Não. Senti seu sorriso em meus lábios. -É mais rápido. 
 Eu obedeci, senti seus lábios mais uma vez nos meus, enquanto suas lágrimas corriam e me molhavam, senti suas mãos em meus cabelos e então comecei a contar. Ela beijou minha testa, minhas bochechas e a ponta do meu nariz. 
 A porta bateu eu estava no cinquenta. 
 Seu perfume e seu calor ainda estavam aqui em mim. 
-Gizelly. Chamei, mas ela não respondeu.
 Não iria chegar ao cem. 
 Abri os olhos e não havia nenhum sinal dela, era como se ela nunca estivesse ali. 
 Dei partida no carro e segui meu caminho, as lágrimas teimando em querer descer. Mais um segundo, dos 86400 que eu precisava sobreviver.
 Não demorou muito para eu chegar na minha casa. Parei na garagem e não a reconheci, olhei para o banco ao lado e senti uma dor no peito como se uma lança me perfurasse aos poucos.
 Era como se o bandaid estivesse saindo ainda. 
 E eu não aguentei mais nenhum segundo. 
 E eu chorei.
 Bati no volante e chorei.
 Não havia mais nada que eu pudesse fazer.
 A dor estava ali, as lágrimas estavam ali e minha voz implorava por ela, meu corpo implorava por ela. Meu peito, um buraco que só ela poderia preencher. 
 E eu chorei. Por ela. 

One Day. (Girafa)Where stories live. Discover now