Hora 22.

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Acordei com a campainha tocando, olhei minha cama o notebook já havia desligado e os papéis estavam todos bagunçados, a casa estava quieta, o que significava que Ivo não havia voltado para casa e de certa forma senti alivio nisso, aquele não era um lado que eu tivesse visto dele e era um lado que definitivamente não gostei de ver, seus olhos estavam vermelhos e ele estava até que caricato demais, jogando braços para cima e pisando forte enquanto andava de um lado para o outro.
A campainha tocou novamente, levantei da cama apressada calçando os chinelos.
-Já vai. Gritei procurando as chaves, odeio que Ivo sempre tira a minha e a joga em qualquer lugar.
Encontrei-as debaixo do sofá. Que diabo Ivo, pior que morar com uma criança, abri a porta e parado estavam dois homens vestidos de cinza, um era bem senhor com um sorriso enorme e o outro era mais novo, parecia um pouco com o senhor.
-Dona Gizelly? Ele falou e estranhei, não o conhecia.
-Sim?
-Somos Teleco e filho, recebemos uma ligação sobre um carro velho que precisa de concerto.
-Sinto muito acho que estão na casa errada.
-Acho que não. O mais novo falou olhando ao redor -Tenho certeza que é aquele pedaço de sucata ali.
Senti vontade de socar ele, ninguém fala do meu bebê assim.
-Sinto muito pelo meu filho, eu deveria ter sido mais firme em sua educação.
-É, também acho, senhor.
-Mas eu tenho certeza que é aqui, a dona Rafaella disse que era um carro bem velho mas que para tratar com carinho.
-Rafaella? Perguntei.
-Sim senhora, ela quem nos contratou, disse que você não entenderia e que se fosse preciso para te dar esse bilhete.
O senhor esticou a mão sorrindo ainda e me entregou um pedaço de papel sujo de graxa, abri e ali tinha uma letra perfeita de mão. "Oi meu amor, sei que cê disse para não termos contato e de certa forma não estamos tendo, mas não conseguiria pensar em passar um ano longe de ocê sem poder te dar carona e não confio nos taxistas, sei como esse carro significa para você então está nas melhores mãos que pude achar, Teleco cuida a anos dos meus carros e era o único indicado para o seu. Espero que goste." Fechei o bilhete e segurei firme.
-Vou pegar as chaves.
-A senhora sabe o que ele tem?
-Ela. Sorri. -O nome é Margarida. Peguei as chaves e fechei a porta atrás de mim.
-Me perdoe, o que a Margarida tem?
-Não sei dizer, ela solta muita fumaça e simplesmente parou de ligar, ela tem no minimo uns trinta anos e uns 18 sem ninguém arrumar ou ao menos vê-la.
-Bom, nós temos uma oficina ambulante. Ele apontou para o trailer. -Se não pudermos terei que levar, mas trago ele o mais rápido que puder tudo bem para a senhora?
-Por mim não tem problemas, eu nem sabia que vocês viriam.
-É, a dona Rafaella poderia ter avisado.
-Ela quis fazer surpresa acho.
-Vocês devem ser boas amigas, ela disse para até pintar se a senhora precisasse, dar um banho de brilho sabe?
-Sim, somos ótimas amigas, é um amor enorme. Sorri.
-Bom, se a senhora me der licença vou ir trabalhar.
-Qualquer coisa só chamar que eu venho, estarei na sala. Apontei para a janela e me retirei.
Sentei no sofá e ouvi Teleco conversar com o filho sobre termos que eu não entendia, lembro quando Julia tentava me ensinar ela dizia "você precisa aprender e se um dia eu não estiver mais aqui?" sempre com alguma ferramenta na mão, metade dentro do fusca e a outra fora, eu sempre respondia que ela jamais não estaria aqui.
Peguei todos os documentos que precisava ver, me estiquei com as pernas para cima do sofá e liguei a televisão pra ouvir um barulho de fundo que não fosse os distintos, mas ao mesmo tempo, familiares barulhos vindo da minha Margarida.
Tentei me concentrar, o cochilo havia me revigorado e parecia já uma vida distante tudo isso com Rafaella, a dor ainda estava aqui presente, a vontade de estar com ela era ainda sufocante, mas parecia outra vida, quase como um sonho. Seu perfume havia desaparecido de meu corpo no banho e o enjoo levou seus beijos. O que me restou foram as doces memórias e os gritos de Ivo ecoando em minha mente.
Recebi uma mensagem, mas estava ocupada demais para ver o que era, recebi outra e quando a ligação veio não pude mais ignorar, o nome de Letícia brilhava em minha tela e atendi assustada, ela normalmente não me ligava depois de mandar mensagens, ela normalmente esperava eu responder. Mas até aí, minha vida estava de ponta cabeça e eu já não sei mais o que é normal ou não.
-Aconteceu alguma coisa? Perguntei.
-Você está em casa? Ela perguntou assustada.
-Sim, o que está acontecendo?
-Coloca no canal 56, estou indo aí.
-Ok? Mas ela já havia desligado.
Coloquei no canal que ela havia dito, estava passando um programa de fofoca, mas no momento estava no comercial. O que era tão importante pra que ela viesse aqui uma hora dessas? Letícia morava na rua de cima, então quando chegou antes do fim dos comerciais ofegante não estranhei, ela estava com os gêmeos no carrinho dormindo e seu cabelo estava bagunçado, vestia pijamas e pantufas e não se importou com isso ou onde deixou o carrinho com os gêmeos dormindo.
-Ótimo, ainda não voltou. Ela disse tirando algumas coisas do caminho, pra que ela pudesse arrumar o carrinho na sala para que pudesse ver.
-O que houve? Perguntei sem entender nada.
-Não queria te deixar sozinha quando visse isso.
-Isso o que Letícia?
-Bom, primeiro acho que você me deve uma explicação.
-Devo?
-Você já contou tudo para Ivo?
-Sim, ele não reagiu muito bem.
-Eu só posso imaginar. Letícia riu sentando no sofá e aumentando o volume da televisão. -Vai começar.
Sentei no sofá ao lado dela, tirando meus papéis do caminho, o programa apareceu e nele havia uma grande sofá branco com algumas pessoas sentadas, entre eles uma senhora com cabelos brancos bem vestida, um homem preto de terno e uma mulher de cabelos vermelhos e vestido até o pé, o cenário era simples, parecia a sala de estar de alguém com um pouco de dinheiro e gostos simples, eles apareceram rindo e falando algo sobre o bloco anterior e um bolo?
Será isso que Letícia queria que eu visse? Um bolo?!???
Me virei para ela. mas ela apenas apontou para a televisão.
-Agora vamos a matéria que todos gostariam de saber com exclusividade. A senhora falou.
-O que são essas fotos que todo mundo tem nos enviado em questão de uma hora? Quem é essa mulher misteriosa? Como se conheceram e o mais importante, que pecados elas estão cometendo? E então foi a vez do homem dizer.
Ainda sem entender olhei para televisão, na tela apareciam fotos censuradas, era tudo escuro em um tom de azul, mas a foto estava embaçada para dar suspense.
-Todos aqui conhecemos Rafaella, a grande escritora religiosa de livros de autoajuda para mamães de primeira viagem e receitas. A mulher de vestido mostrou um livro de Rafa, uma foto dela apareceu no telão atrás deles. -Mãe, esposa, mulher de família religiosa, caridosa e agora nomeada para o prêmio nacional de mulher religiosa!
-Todos conhecemos e amamos nossa Rafaella, não é mesmo?
-Eu mesma me via bastante nela, claro sem toda essa beleza, mas uma mãe vivendo para cuidar do filho e cuidar da alma daqueles que não tem o amor de Deus consigo, mas os segredos que ela carrega, são segredos que nunca deveriam ter vindo à tona. Falou a senhora novamente, meu coração começou a enfraquecer. Já esperando o que vinha em seguida.
-Mas já que surgiu, fico feliz em dizer que somos as primeiras e exclusivas que vão dizer tudo sobre isso, vem comigo!
Enquanto rodava a vinheta olhei para Letícia perplexa, soltavam fatos sobre os livros e sobre a Rafa, senti meu peito pesar e o ar escapar. Não podia ser isso que eu estava pensando. Não poderia ser.
-Ontem à noite, Rafaella foi flagrada saindo de uma festa um pouco duvidosa, em um motel de beira de estrada vejam bem, mas o pior disso tudo é que ela foi vista aos beijos com duas mulheres e saindo de mãos dadas com outra!
-Com duas mulheres? Perguntou o homem chocado. -Não se fazem mais mulheres de família como antigamente.
-Ela que se dizia tão... bom, mas o que queremos saber é: quem é essa mulher misteriosa?
-Verdade Elaine, quem é?
-Para esclarecer tudo, estamos aqui com Ivo, o marido da mulher misteriosa.
-Não! Gritei tapando a boca. -Ele não faria isso, faria?
-Eu creio que faria e fez, Gi. Sinto muito.
-Boa tarde Ivo, então o que nos diz, quem é essa misteriosa mulher e como se conheceram?
-Boa tarde, Elaine, Márcia, José. -Ivo estava lá, mesma roupa que saiu daqui. -Bom, antes de tudo gostaria de agradecer pela oportunidade de esclarecer tudo.
-Eu quem agradeço pela exclusividade.
-Essa mulher misteriosa se chama Gizelly, advogado com muitas causas boas como racismo, violência contra a mulher, homofobia e transfobia... Uma mulher que se diz bissexual, que dizia me amar e que não via motivos pra me trair com o sexo oposto, mas na primeira oportunidade que viu, estava aos beijos com essa hipócrita falsa religiosa! Voltou para casa dizendo que estava apaixonada, voltou para casa dizendo que já haviam se visto algumas vezes e nunca haviam criado coragem para conversar e quando pelo "destino" foram unidas, não veem razão pra estarem separadas.
-Eu não acredito nisso!
-E sabe o pior? Não consideram o que isso vai fazer comigo ou com os fãs dela!
-Eu não acredito! Falei novamente sentindo as lágrimas descerem pelos meus olhos.
-E qual foi o "destino" que as uniu? Perguntou a senhora.
-Uma visita a faculdade dos filhos que são amigos de sala, Gizelly estava sem carro e sua filha pediu ao amigo uma carona pra a mãe, mas se desviaram e caíram nas tentações do diabo.
-Que absurdo. O homem falou. -E como será sua vida depois dessa traição?
-Bom, eu irei me dedicar completamente ao meu restaurante, vou inaugurá-lo... Desliguei a televisão.
Encarei perplexa a televisão, Letícia passou a mão em minhas costas, meu telefone de casa começou a tocar, ao mesmo tempo que eu recebia inúmeras mensagens em meu celular. Já era. Estava ali para todos saberem do nosso pequeno encontro, não havia mais "o que acontece no quarto, fica no quarto" não tinha mais segredo, não havia mais paz, procurei para ver se ela havia mandado mensagem, mas nenhuma era dela. Júlia dizia que era pra eu ligar para ela quando tudo melhorasse, ela sabia que eu precisaria de tempo.
Disquei os números e esperei, mas logo de cara a voz de uma mulher dizendo que o número chamado não existe. Rafaella estava sem celular.
Olhei para Letícia, as lágrimas caindo. Ela chorava junto comigo, uma das milhares de coisas que os hormônios e a amizade lhe dão.
-Eu não acredito que ele fez isso, sangue fogo e labareda!!!
-Eu também não Gi.
-Aqui em casa ele não pisa mais. Peguei o telefone desligando o número que me ligava.
Procurei o número de um chaveiro e implorei para que viesse o mais rápido possível, Ivo não iria mais pisar os pés na minha casa. Não iria mais falar comigo, para mim, Ivo estava morto e enterrado.
Desconectei o fio do telefone e ajudei Letícia a acalmar os gêmeos, o barulho havia acordado-os. Com seu bebê no colo, sentia que podia me acalmar, enquanto embalava no sono fui respirando e me acalmando.
Teleco bateu na porta pouco depois dos gêmeos estarem de volta em seu berço dormindo.
-Olha, o carro está pronto. Ele sorriu. -A senhora vai querer o banho de brilho?
-Não precisa Teleco. -Sorri de volta, mas meu sorriso parecia falso. Eu o sentia falso. -Agradeço de verdade toda ajuda.
-Não tem de quê, a senhora está bem?
-Vou ficar Teleco.
-Eu sei que estou sujo de graxa, mas se você quiser eu posso te oferecer um abraço e dizer que nada nessa vida vem sem um propósito sabe? Talvez isso que esteja te fazendo chorar agora, vai ser tão importante no futuro que vai te fazer sorrir lá pra frente.
Aquele senhor tão pequeno e tão idoso na minha frente me fez sorrir. O abracei sem me importar com as manchas e as sujeiras, o abracei como se estivesse abraçando um avô.

One Day. (Girafa)Where stories live. Discover now