Hora 7

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O vento frio batia em nosso corpo, Gizelly estava com o corpo arrepiado, desci do capô do carro indo em direção ao porta-malas enquanto ela me observava, ignorei deliberadamente suas perguntas, abri a porta pegando o cobertor que Júnior havia pedido pra eu levar, parece até que ele sabia que isso aconteceria.
-Rafa, sério o que você tá fazendo?
-O que uma garota tem que fazer para poder fazer uma surpresa em paz? Gritei de trás do carro.
Olhei o que mais tinha no porta-malas, mochilas; comidas que provavelmente já deviam estar ficando azedas, uma cesta dos meus cupcakes de cenoura com brigadeiro, peguei-os fechando o porta-malas e voltando para a frente encontrando uma Gizelly arrepiada de frio, mas com um rosto confuso.
-Cobertores e cupcakes.
-Senhora Rafaella, seria esse dia uma forma de você me conquistar? Talvez você já tenha me visto no mercado e se apaixonado por mim, tramando esse plano mirabolante pra me fazer beijar esses lábios.
Dei de ombros subindo no capô do carro e puxando-a para mais perto cobrindo nossos corpos.
-Não foi no mercado que te vi a primeira vez, foi no trânsito saindo da corte, você estava linda de terninho.
-E foi ali que se apaixonou por mim e criou esse plano todo? Ela disse rindo.
-Não. Mas eu te vi mais algumas vezes pela cidade, talvez eu tenha passado na frente de onde te vi mais vezes do que deveria, sempre no mesmo horário.
-Espera, você tá falando sério? Dei de ombros novamente.
-Sabe, é uma cidade pequena.
-Eu não percebi que você e a loira do terninho cinza fossem as mesmas pessoas até que você disse ser advogada, então ali tudo fez sentido, ali sim eu percebi quem era você e como o destino brinca com a gente.
-Terninho? Como assim Rafaella?
-Eu te encontrei algumas vezes no mercado, nunca soube seu nome, mas sabia onde você trabalhava pelo menos achei que trabalhasse ali, ou talvez que você estivesse muito em um julgamento.
"E então eu já não conseguia mais te tirar da cabeça, toda vez que eu saia na rua eu me pegava pensando se iria te ver, se hoje seria o dia que escutaria sua voz ou que iríamos conversar, mas aí eu entrava em pânico só de pensar em conversar com você, o que eu diria?  O que aconteceria? Viraríamos amigas e então eu teria que esconder para sempre a atração que eu sentia por você?
Então comecei a trabalhar no meu livro, não os de auto-ajuda, comecei a trabalhar em meu romance que parecia mais uma autobiografia, mas deixei de canto quando não sabia nada sobre a mulher que escrevia, nenhuma das duas na verdade.
Uma delas, a principal era baseada em mim, mas eu não me via ali! Eu não reconhecia aquela mulher que perseguia e pensava e desejava outra mulher, então mudei para um homem e continuava não fazendo sentido!  Ela estava obcecada por uma mulher de longos cabelos loiros e terninhos cinzas. Mas estava ficando perigoso demais, obcecada demais, eu realmente não me reconhecia nem conhecia a pessoa que eu havia escrito, então deixei de lado, não arrumei o gênero, não coloquei um ponto final, apenas deixei lá.
Me foquei nos meus outro livros, nas minhas ONGs e viagens e nunca mais te encontrei, não por vontade própria nem por destino; Mas quando Júnior me mandou seu telefone que vi a sua foto eu soube que era o destino me fazendo te encontrar, me fazendo te olhar nos olhos e me dando a oportunidade de conversar com você, estar com você, talvez fugir, mudar de nome, eu fiquei atraída novamente por uma mulher, só que dessa vez eu sabia pelo menos um nome."
Gizelly me olhava sem piscar e boquiaberta será que eu não deveria ter falado nada? Será agora que ela pede um táxi e volta pra casa me deixando sozinha com nossas memórias?
-Agora você pode terminar sua história, já pode ter o grande beijo, romântico na hidromassagem, e esse pode ser o final, olhando para as estrelas prometendo ficarem juntas para todo o sempre.  Ela deu de ombros.
Ela simplesmente deu de ombros e continuou comendo seu cupcake enquanto olhava o céu escurecendo. Abaixei a cabeça sentindo meu corpo queimar de vergonha.
-Mas esse não é o final, nós ainda estamos aqui esperando para voltar pros nosso filhos.  Nós não prometemos ficar juntas para sempre e nós temos que voltar para a realidade Gizelly, nós temos maridos para qual voltar, casas, empregos...  Não é porque passamos horas maravilhosas juntas e nos declaramos alma gêmeas, droga Gizelly não é porque eu realmente acho que nunca senti por ninguém o que eu to sentindo agora que quer dizer que podemos ficar aqui e esquecer todo o resto! Esse não é nosso final. Isso é a vida real, não um romance qualquer de uma pessoa desempregada e entediada!
Desci do capô do carro sentindo o frio fora do cobertor, queria sair andando, atravessar aquelas árvores e correr para longe de tudo, senti que estava com lágrimas nos olhos querendo escapar, senti meus olhos ardendo enquanto eu as segurava.
Era tudo muito confuso, era tudo tão novo, tão intenso.
-Ei. Ei. Gizelly estava comigo, seus braços me puxando para que olhasse para ela. -Porque tá chorando?
-Porque eu sinto tudo isso e você não se importa.
-Claro que eu me importo Rafa. Ela me puxou para perto beijando meu rosto. -Claro que eu me importo, o que você está sentindo?
-Eu não sei. Falei e senti uma vontade de chorar ao mesmo tempo que rir. -Eu sinto meu peito doer, meu coração pequeno ao mesmo tempo que enorme, eu sinto vontade de te abraçar e nunca mais soltar ao mesmo tempo que quero ficar longe, me sinto com 15 anos ao mesmo tempo que me sinto com 100.
-Eu sei como se sente, vem cá.
Gizelly me colocou no capô do carro novamente e ficou de pé em minha frente, passei o cobertor em suas costas nos cobrindo.
-Tudo isso é normal Rafa, nós estamos acostumadas, principalmente você, a viver uma vida onde o normal; o aceitável é estar com um homem se possível um único homem para o resto da vida, mas você tem que aprender a aceitar que talvez não seja o que você quer, talvez o que você sempre quis foi a menina Anne, sou eu... E nós ficamos confusas quando nos apaixonamos por alguém assim, por uma mulher. Talvez nem seja eu quem você esteja apaixonada, talvez seja o que eu represento para você, liberdade.
-Como? Quando isso passa?
-Ah meu amor. Ela riu beijando meu rosto. -Nunca. Você vai se apaixonar por mulheres a vida toda e sentir isso a vida toda!
Resmunguei pensando na confusão de emoções e em como não quero isso pro resto da vida, eu quero ser feliz.
-Mas se você souber o que você quer, se você se libertar e aceitar, começa a ficar mais tranquilo até que a confusão passa e só resta todos os outros sentimentos daqui.
Ela tocou meu coração sorrindo, bom essa frase tem varias interpretações e ela usou todas, ela tocou com seu sorriso, suas palavras, seu dedo, metaforicamente! Ela estava ali! E meu coração, eu poderia jurar que só queria o dela.
-Talvez eu tenha que fazer algo sobre João.
-Se for o que você está sentindo.
-Eu vou ter que pensar.
-Vai. Eu sei que não vai ser fácil.
-Mas eu tenho você nesse momento, e não quero ter que pensar em nada a não ser em você, nosso quarto e o que mais eu posso descobrir hoje.
Encostei meus lábios nos seus.
-Você tem certeza disso? Da última vez nos trouxe até aqui, não quero te perder novamente.
Fechei meus olhos e assenti, eu também não quero perdê-la novamente de forma alguma.
Sentir seu beijo me arrepiava, me adormecia, me acordava e era tudo o que eu poderia esperar, querer, ter para o resto da vida.
-Olha uma estrela cadente. Apontei para o céu. -Rápido faz um pedido.
Fechei os olhos e pensei, o que eu poderia querer? Queria poder mudar minha vida, passado, presente, futuro. Queria poder ter dito tudo o que eu sempre quis, ter me abraçado, me aceitado antes, para que agora, isso, nós, fôssemos normal, para que eu e ela pudéssemos ser nós, sem culpa, sem marido, sem... Só queria poder ter tido as oportunidades pra mudar quem eu sou!
Abri os olhos e ela estava me olhando, sorrindo. Ela sempre estava sorrindo quando eu olhava para ela e estava sempre me olhando primeiro.
-O que você pediu?  Ela perguntou.
-Ué, se eu falar não realiza.
-Eu não pedi nada. Ela disse, dando de ombros.
-Não acredita?
-Acredito, mas tudo o que eu queria está aqui. Em minhas mãos.
-Ah, é? E o que seria?
-Você. A oportunidade de poder sentir uma alma gêmea novamente, mas...
-Mas o que?
-Eu devia ter desejado a coisa que eu mais quero nesse mundo todo!
-E o que seria?
-Mais desse cupcake maravilhoso.
-Sua besta. Achei que você estivesse falando algo sério. Entreguei a chave para ela. -Tem mais no porta-malas.
-Viu, você é tudo o que eu preciso Rafa. Ela me deu um beijo rápido nos lábios e correu para trás do carro. -Quem precisa de um emprego estável se a gente pode fugir e viver dos seus cupcakes?
-O que acha de voltarmos para o quarto? Para a hidromassagem quentinha?
-Eu acho uma boa ideia, jaja eu vou morrer de hipotermia aqui. Gi apareceu com a bandeja de cupcakes.
-Sabe o que eu aprendi para curar hipotermia?
-O que?
-Deitar peladas de conchinha! Funciona.
-Então estou congelando, morrendo, me salva.
-Ah não! Está morrendo? Corre tire suas roupas...
Atravessamos o saguão, uma bandeja nas mãos dela enquanto sua cintura nas minhas, ela é tão pequenina que me sinto uma gigante engolindo seu pequeno corpo em meus braços. Ela ria de alguma coisa, enquanto eu absorvia a essência dela em mim, seu cheiro, sua risada, sua energia. E então eu parei.
Minha perna não se movia. Meu cérebro não conseguia processar as informações. Meu corpo parecia que iria desmontar ali no chão. Meus olhos me enganavam. Isso não podia estar acontecendo.
-Rafa? Gizelly me chamou. -O que houve?
-Rafaella? Aquela voz...
-Meu desejo... Realizou... Mas não da forma que eu queria.
-Rafa o que houve? Gizelly chamou novamente.
-Rafaella é você mesmo? Aquela voz. Ela. Se aproximando mais e mais, enquanto Gi olhava de uma para outra.
-Marianne. Sorri sentindo meu corpo e aquele nome pesado saindo de meus lábios.
-Meu Deus é você mesmo, eu não acredito que você lembre de mim.
Era ela mesma. Os cabelos ruivos agora estavam na cintura, lisos, os olhos continuavam vermelhos ao redor como se ela tivesse acabado de sair do filme mais triste, mas o rosto estava mais maduro, tinha um longo vestido verde que realçava cada curva de seu corpo de mulher e cada sarda em sua pele. 
Marianne me abraçou e eu me senti uma criança novamente, lembrei de todas as vezes que a vi dormir, que esperei ela chegar, todas vezes que nos aventuramos na piscina, todos os beijos que eu quis roubar... E agora ela estava ali.
-Claro. Claro que eu lembro. Você é uma pessoa muito importante na minha vida Anne.
-Eu sou?
-Sim. Olhei para o lado, Gi havia fechado o rosto, um leve bico se formando enquanto a testa fincada a deixava com uma expressão de bebê. -Essa é a Anne. Respondi.
-Prazer. Anne falou esticando a mão para Gi.
-Essa é Gizelly minha... Sorri, me segurando para não falar o que eu pudesse me arrepender.  -Uma das pessoas mais importantes.
-Prazer. A voz de Gizelly não parecia dela.
-Esses são seus famoso cupcakes de cenoura?
-São. Gizelly deu um passo pra trás quando Anne esticou a mão para pegar.
-Fazem anos que eu não como um. Ela conseguiu pegar, Gi olhou para mim em desespero. -Como você está? Eu andei pensando em você.
-Eu vou sentar ali enquanto vocês se... Enquanto vocês conversam.
-Tudo bem, não vou demorar, se quiser subir para o nosso quarto.
-Não! Gizelly disse rapidamente. -Estarei ali.
Ela se afastava indo em direção a poltrona vermelha atrás de nós, mas ela estava brava e eu não poderia deixá-la ir assim.
Puxei-a a meu encontro e beijei no canto de seus lábios, quase imperceptível para quem visse de longe, e sussurro em seu ouvido "Eu consigo ver seu ciúmes, não precisa ter", antes que ela seguisse novamente.
-O que está fazendo aqui? Marianne disse.
-Fugindo da chuva, estávamos indo ver nossos filhos na faculdade.
-Nossos filhos? Ela disse e percebi a sonoridade, como se os dois fossem meu e dela,  e eu gostei da ideia. -Sempre achei que você iria acabar indo para esse lado.
-Não é isso. Sorri tentando arrumar.—Ela é mãe da amiga do meu filho, estou dando uma carona para ela.
-Ah, que susto! Por um segundo eu achei que fossem um casal. E então, está casada?
-Estou me divorciando na verdade.
Divorciando, a palavra fez eu me sentir bem como fazia tempo que não sentia.
-Ah, sinto muito ouvir isso, ele arrumou outra?
-Não. Eu que arrumei.
-Ah! Uau!
-Sim, agora eu posso ser quem eu sempre quis ser.
-Além de escritora e famosa? O que mais pode querer?
-Ser livre Anne! Ser livre é tudo o que eu sempre quis, agora eu posso amar quem eu quiser sem ficar presa em um medo bobo, sem segredos.
-Nossa. Falando em segredos... Ela riu se aproximando mais de mim. -Eu sempre achei que você fosse apaixonada por mim naquela época.
Senti meu coração pesar.
-Eu era. Me sentia leve de finalmente dizer. -Eu era completamente apaixonada por você e acabou comigo quando você foi embora, ficar com aquele cara... Eu me senti trocada.
-Eu... Eu sinto muito meu amor. Eu te amava também é por um tempo eu achei que fosse... você sabe... Porque eu te amava demais e não me via sem você, mas então conheci o..? Não me lembro o nome dele mais e então eu vi que definitivamente não era, não me leve a mal na época da faculdade eu experimentei, mas eu realmente gosto muito de homens. E sinto muito que isso tenha te feito sofrer por tanto tempo.
-Não tem problemas, agora eu tenho alguém que eu posso ser eu mesma, que eu posso ser gay, que eu posso beijar sem me sentir mal.
Olhei para Gizelly, a testa vincada e um cupcake na mão.
-E ela é tudo o que eu preciso, se me der licença preciso ir falar para ela o quão apaixonada eu estou. Foi bom te encontrar.
Abracei-a uma última vez, sentindo seu perfume, seus braços e não sentindo absolutamente nada do que achei que fosse a não ser um capítulo terminando para começar um melhor.

One Day. (Girafa)Where stories live. Discover now