[TH] 'Peephole pt. II

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A água gelada acertou primeiro seu ombro, encharcando metade da camisa cinza feita de um tecido elástico fino e macio. Taehyung queria gritar com o choque térmico da água contra sua pele aquecida, era torturante de uma forma e quase um alívio de outra.

Quando estava sofrendo nos banhos gelados, raramente conseguia sofrer um lapso de memória, tudo ficava centrado na tensão dos seus músculos e na sensação dolorosamente fria. O cara tatuado era tão frio quanto a água, ele não esboçava nenhum expressão além de estar decidido a empurrar seu corpo para baixo do chuveiro e em seguida derramar uma boa quantidade de shampoo em sua cabeça, passando a mão abruptamente pelo seu couro cabeludo até fazer espuma e depois sair do banheiro, deixando uma toalha e roupas limpas em cima da pia.

No primeiro banho, Taehyung quase se sufocou com a água, estando tão alheio e letárgico a tudo que quando foi colocado embaixo da torrente do chuveiro, engoliu e aspirou água, passando dois dias tossindo por causa disso. Naquele banho, espuma caiu nos seus olhos também, foi o pior.

E ele apenas não conseguia se mexer propriamente, era tudo tão assustador e real que ele ainda sentia o sangue em sua pele. Bem... na verdade, o sangue ainda eatava em sua pele, grudado e seco em sua epiderme e nas roupas imundas de fuligem e vômito.

Ele provavelmente estava com o mesmo cheiro de um corpo em decomposição.

Este último banho tinha sido o mais aceitável dos cinco até o momento, Taehyung tinha conseguido se lavar e vestir suas roupas com mais aptidão, suas mãos tremiam menos, e ele até escovou o cabelo e os dentes.

Aquele cara na frente do espelho não se parecia ele: suas bochechas estavam fundas, círculos escuros ao redor dos olhos, toda a parte branca do globo ocular estava rodeada de vermelho. Ele estava pálido, mais magro, e parecia prestes a ter um colapso nervoso.

Era a primeira vez que Taehyung se enxergava de verdade depois de tudo, voltando aos poucos, sua cabeça ainda estava confusa demais, seu corpo se sentia dormente por inteiro.

Respirando um pouco mais fundo ele saiu do banheiro.

Como de costume, o cara estranho estava lá, com sua eventual feição livre de qualquer humor aparente. Ele apontou com o queixo para fora do quarto, e Taehyung já sabia que tinha de ir para a cozinha.

Antes, o estranho iria colocar uma palma no meio das suas omoplatas e o empurrar na direção, como se ele fosse uma pessoa cega.

Talvez fosse o caso, de uma forma mais psicológica e menos fisiológica. Seus órgãos estavam funcionando, seus sentidos também, mas sua cabeça estava caótica ao ponto de uma reação paralizada.

O cheiro de fumaça e sangue ainda muito recente em suas narinas, os gritos de socorro e pavor ainda ecoavam na sua mente. Tudo isso somado ao conhecimento de que o único homem que o amava e cuidava dele estava morto.

Mas ele estava começando a se sentir acordado agora, propriamente notando seus arredores, apurando sua cognição, pois antes a realidade parecia estar vindo através de um olho-mágico, e a escuridão ao redor mostrasse as mesmas cenas que mais o aterrorizavam; garota com o tornozelo partido tentando andar enquanto o salto alto puxava seu pé para o lado e osso exposto saindo de dentro da sua carne, deixando um rastro vermelho de sangue, uma bala saindo bem no meio da sua testa em seguida, abrindo uma fissura enorme ao sair, seu corpo mole caindo para frente; o homem que levou um tiro na boca enquanto tentava ajudar Taehyung a se levantar; o barman que estava com metade do corpo pegando fogo se debatendo no chão enquanto as chamas azuis o queimavam vivo.

Tinham outras, muitas outras.

Foi um massacre digno dos filmes de terror que seu irmão mais velho o forçava a assistir na infância, a diferença era que tudo era muito real.

Cruelmente real.

As memórias ficavam piores nos seus pesadelos, e Taehyung só conseguia ficar congelado. Assistindo e assistindo e assistindo e assistindo tudo mais uma vez, até chorar mudo, em desespero, sem conseguir pedir ajuda.

Talvez ele devesse tentar agora que conseguia entender o que estava seu ao redor.

Ele estava em casa.

Havia um desconhecido o mantendo vivo (o mesmo que o tirou da boate).

Tinha alguma coisa muito errada acontecendo. Seu pai estava envolvido.

Hyungsik...
Ainda estava morto.

O estranho apontou para a mesa da sala de jantar, a tigela laranja grande estava com o que parecia ser uma sopa dentro. Pela coloração, provavelmente era uma sopa instantânea enlatada, vermelha, gordurosa e cheia de conservantes.

Taehyung se sentou pesadamente, sentindo o cheiro, não era ruim, só era estranho e artificial. Pegou a colher um pouco hesitante.

Como sempre o cara só ia ficar parado o monitorando, talvez para fazê-lo comer o suficiente.

Quando o gosto salgado entrou em contato com sua língua, Taehyung sentiu um certo alívio imediato, sem dúvidas, seu corpo estava o dizendo que precisava daquilo.

Depois do banho, ele se sentia um pouco menos sufocado do que como estava pela manhã, se sua noção de tempo estivesse correta pelo menos, era a única coisa relativa a sua cabeça que ele confiava.

Se ele tivesse sorte, no outro dia conseguiria tentar decifrar o que estava acontecendo com ele e o porquê de um completo desconhecido estar cuidando dele em seu apartamento.

O jantar foi rápido e ele comeu tudo com uma obediência silenciosa, mas podia notar que o cara das tatuagens estava notando a mudança no seu comportamento. Parecia tenso, como se a qualquer momento Taehyung fosse fazer algo de errado.

Voltando para cama, Taehyung logo se sentiu triste e sozinho. Foi atingido pela memória da garota com tornozelo partido.

Mesmo com a iluminação comprometida e irregular, a imagem era clara, o osso saiu de dentro dos músculos e da pele, exibindo uma camada sangrenta de carne e nervos. O pé dela, ainda preso a um salto ridiculamente alto, estava jogado para o lado em uma posição torcida e claramente não natural, com a pele e os dedos já começando a ficarem em uma tonalidade roxa doentia. A menina chorava em desespero por ajuda, se segurando na parede de lâmpadas, parecia jovem e bonita mesmo com a maquiagem borrada e destorcida no rosto contorcido pela dor extrema.

Mas o osso, sangrento e partido contra o chão, iria assombrar alguém pelo resto da vida.

Taehyung sentiu a bile borbulhar garganta fora, nem mesmo lhe dando o devido tempo de se abaixar. O vômito sujou toda a parte da frente de sua camisa, antes de alguém o puxar para a direção oposta. Não antes dele assistir a bala atravessar a cabeça da garota.

Foi com essa memória que ele dormiu. Apenas para ter um pesadelo pior e mais doentio.

Dessa vez, pela primeira vez, ele acordou gritando.

CHATTER | TAEKOOKOnde histórias criam vida. Descubra agora