CAPÍTULO 30 - ANA

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- Isso está com uma cara horrível. – Danilo diz, olhando para a panela a minha frente com uma cara de nojo tão horrível que dou uma cotovelada em seu estômago com toda a força do meu corpo. Mas ele mal se afeta, pois me empurra para longe do fogão com um sorriso estupidamente lindo espalhado em seu rosto. Estávamos assim agora, só sorrisos depois da nossa conversa bêbada a dois dias. Bem, eu era a parte bêbada da conversa, mas não precisamos focar nisso. Agora um clima leve e agradável nos rodeava, e era mais fácil brincar e conversar sobre a vida sem o peso obscuro e silencioso que pairava entre nós.

Passamos os dois últimos dias conversando o dia inteiro. Nos atualizando sobre nossos trabalhos, terapia, minha bulimia, nossas famílias e amigos. Rimos, brincamos, nos aproximamos. É incrível como tudo funciona quando as duas pessoas estão dispostas. Essa semana estava facilmente se tornando a melhor da minha vida. Tomávamos vinho toda noite, e antes de dormir, Danilo tocava pra mim. Nem sempre cantava, mas eu sabia o que as notas melancólicas, lindas, mágicas significavam, o quão monumental era tudo que vinha acontecendo entre nós e como a música estava falando isso por ele, por nós dois.

- Tomara que você erre na mão. – Eu digo, dando língua, enquanto ele tenta salvar a gororoba vermelha na panela. Eu era uma péssima cozinheira, não adiantava tentar enganar. Ele revira os olhos para mim e faço a única coisa lógica a se fazer quando o amor da sua vida que te traiu e você odiou por dois anos, apenas para continuar ainda mais apaixonada e decidir virar apenas amiga, está parado a sua frente em toda a sua imponência, cozinhando algo delicioso num chalé no meio do nada, numa viagem armada por sua melhor amiga e cunhada de tal amor da vida mencionado: abro a geladeira, alcanço a garrafa de vinho e nos sirvo duas taças caprichadas.

Tomo um gole da minha, e coloco a outra na sua frente. Ele toma a taça da minha mão e quase babo ao ver sua boca perfeita encostar na taça de cristal, como havia encostado no meu pescoço há poucos dias. Posso sentir o sangue se acumulando em minhas bochechas e sinto meu pescoço queimar.

- Obrigado, querida. – Ele agradece docemente, distraído, voltando a se concentrar nas panelas a sua frente. E eu fico parada, feito uma boba, sentindo minha pele ser acariciada pela sua voz grave. Resmungo qualquer coisa em resposta e me sento sobre a bancada, ainda o observando. Agora que não precisava mais fingir não notá-lo não conseguia mais tirar meus olhos dele. O bastardo era sexy demais, lindo demais para seu próprio bem. Eu queria beijá-lo. Assim que o pensamento se forma em minha cabeça, tampo minha própria boca, como se eu tivesse falado em voz alta, mas percebo que não porque ele continua cantarolando e adicionando coisas a panela.

- Te devo um pedido de desculpas. – Ele diz, abaixando o fogo e se virando para mim, os olhos azuis pensativos. Sei que algo profundo virá a seguida, então tomo mais um gole do vinho e permito que ele continue.

- Desculpe por não ter tentado ser seu amigo mais cedo. – Ele diz, e soa tão absurdo que pulo da bancada. Ele sentia muito por não ter tentado mais? Eu havia dificultado tudo. É claro que ele tinha sua parcela de culpa, mas tranquei todos que importavam pra mim pra fora do meu coração e apesar dele ter sido o gatilho para isso, a culpa foi minha por ter passado os últimos dois anos tendo certeza que ele nem respiraria perto de mim.

Respiro fundo e decido aliviar o clima, desesperada para fazer a névoa arrependida sumir de seu rosto. A decisão de permitir que Danilo voltasse para minha vida tinha sido o primeiro dominó que caiu, e que numa reação em cadeia, vinha derrubando todos os outros. Minha proteção voltou com tudo. Vê-lo triste doía tanto quanto quando estávamos juntos.

- Eu não facilitei para você. – Eu brinco, com um sorriso e ele me devolve um ainda mais brilhante.

- Não mesmo. – Ele concorda, dando um passo em minha direção e nem tento me afastar. Sempre fomos esses dois imãs, sendo sugados, atraídos um pelo outro.

- Desculpe por não ter tentado ser sua amiga antes. – Eu peço e espero que ele acredite porque estou sendo sincera. Não tê-lo na minha vida havia me machucado mais do que sua traição. Tão mais. Danilo dá mais um passo em minha direção, invadindo meu espaço pessoal, e eu nem ouso respirar. Seus olhos estão quentes conforme ele os corre por todo o meu rosto.

- Não se desculpe, Ana. Eu teria esperado o resto da minha vida. – Ele diz, tão sério que permaneço em silêncio, apenas o encarando de volta. Dou um pequeno passo em sua direção, agora quase encostando meus seios em sua barriga e odeio ter que olhar para cima para falar com ele, mas quero que ele veja a verdade em meus olhos quando eu digo as minhas próximas palavras.

- As pessoas erram, Danilo. Ninguém merece ser crucificado para sempre por um erro. – Eu sussurro, e vejo a emoção cruzar seu olhar, o alívio que se espalha por seu corpo. E sinto o alívio que se espalha pelo meu também. Acho que o perdão faz isso com a gente. Nos liberta.

Ele cola sua testa na minha, sua respiração irregular. Está frustrado, é óbvio. Frustrado por ter feito o que fez, por não poder me beijar agora, por nossa separação, por tudo que foi quebrado entre nós e que ele tenta agora, nesse pequeno espaço em que nossas respirações se misturam, consertar.

- Ana, eu preciso que você saiba... – Ele começa, mantendo sua cabeça próxima a minha, seus lábios agora próximos ao meu ouvido. – Preciso que você saiba o quanto eu sinto muito por aquela noite. – Ele fala, a voz trêmula, enojada, cheia de dor. E sinto isso também, conforme as lembranças surgem em minha mente. Tenho que respirar fundo para não me afastar. Porque quero isso. Quero estar aqui, mas não podemos ignorar o que aconteceu. Ele sabe disso também, e é por isso que continua.

- Se eu pudesse, se eu tivesse a chance... – Ele diz, apenas para se interromper, frustrado com essa situação. – Eu sinto tanto...

- Eu sei que você se arrepende, Danilo. – Eu sussurro de volta, porque é verdade. É nítido o quão arrependido ele se sentiu, o quanto ele se odiou. O quanto ele perdeu ao me perder. Ele se afasta de mim, apenas o suficiente para que possa me olhar nos olhos, ele me encara, encara minha boca e eu sei que se eu não o impedir agora, ele vai me beijar. Posso ver o fogo brilhando em suas írises. O desejo. O calor. É tão intenso que paro de respirar. Esse maldito era lindo demais.

- Sua comida vai queimar. – Eu digo, dando-lhe as costas e virando minha taça de uma só vez. Ele respira fundo uma, duas, três vezes antes de se mexer e voltar a checar a comida.

Volto a me sentar na bancada e o observo se mexer em silêncio. Ele termina tudo, serve dois pratos e entrega um em minha mão. Comemos na cozinha mesmo, segurando os pratos sob nossos queixos, nos encarando em um silêncio mortal. Danilo me encara durante cada garfada. Seu lado dominador querendo sair feito uma fera furiosa, e sei que eu havia permitido que ele se aproximasse demais. Era como balançar carne fresca na frente de uma pantera faminta.

Ele me encara quando termino, tirando o prato da minha mão e lavando toda a louça em silêncio. Ele me encara enquanto saboreia sua taça de vinho. Me encara quando olho para o piano, e de volta para ele, me perguntando se irá cantar para mim hoje. Ele balança a cabeça numa negativa rápida, e sei o que ele quer dizer. Que está no limite. Se cantar para mim não vai conseguir se segurar, e para o meu total assombro, percebo que se ele tentasse, eu não o impediria. A tensão em sua mandíbula é tanta que pulo da bancada, determinada a ir dormir e ignorar pelas próximas horas a atração palpável que paira entre nós. Ele vira de costas para mim, as mãos apoiadas na pia com força.

- Boa noite. – Eu sussurro, trêmula, com tanta tensão sexual correndo nas minhas veias que quase tenho que me obrigar a deixá-lo aqui. Começo a caminhar, e assim que alcanço o corredor a voz intensa dele chega até meus ouvidos em luxúria pura.

- Tranque a porta. – Ele diz e não soa nada como uma ameaça, soa exatamente como uma promessa.

Corro e me tranco no banheiro, escovando meus dentes em velocidade recorde. No espelho vejo exatamente aquilo que eu esperava. Minhas bochechas estão vermelhas, os olhos cheios de desejo. Lavo meu rosto com a água gelada, tentando encontrar algum alívio, e não adianta de nada. Saio do banheiro e entro no quarto, fazendo exatamente o que ele mandou, dou duas voltas na chave e a tiro do trinco porque não confio nem em mim mesma. Caminho com raiva até a cama, tirando minha roupa pelo caminho. Que grande ideia sermos amigos havia sido. Patéticos. Nós éramos patéticos. E essa amizade tinha chances gigantescas de dar errado rápido demais. 

QUEBRADOS - Irmãos Fiori: Livro II - COMPLETOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora