Aswan

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Alexandria, agosto de 30 a.C.

Cleópatra

As mãos cheias de adornos tão anormais para mim no dia a dia espalmaram contra a aspereza da parede da sacada do meu aposento privativo, fazendo-me contemplar o Rio Nilo frente ao meu palácio através dos olhos delineados de preto, depois de muitos anos, com Kohl, um tipo de tinta tradicional dos antepassados feita de antimônio e carvão.

Tradicional... Que irônico.

Encarei o céu ensolarado do meu país, das minhas terras, desde o Baixo Egito ao Alto. Eu era soberana de cada centímetro de chão e ainda sim era ameaçada onde nasci, mas não me arrependia. Fui criada para ser grande, para honrar o que meu pai queria, não importava se era necessário matar ou manipular, o poder, o domínio, vinha sempre em primeiro lugar, inclusive acima do meu próprio sangue.

Mas haviam preços que eram necessários serem pagos e em algum momento eles eram cobrados, como agora.

Um soluço me subiu a garganta quando recordei de meu querido Marco Antônio agonizando em meus braços, morrendo como o guerreiro que foi em vida, honrando sua morte como foi honrado em batalhas, na terra e no mar. Eu havia visto com meus próprios olhos sua glória e sua queda.

Que os Deuses o recebam com festejo, pois seu coração pesava como uma pena, apesar de sua mente ser equiparada ao peso de uma tonelada. Meu querido guerreiro.

Afastei-me do batente da varanda enxugando as lágrimas ousadas para observar meu quarto principal, que dentre todos o que eu possuía aquele era o meu favorito. Cresci ali, vi irmãos serem derrubados ali, minha mãe... Aprendi a ter força por meio do caos e que o controle poderia se esvair entre nossos dedos como o sangue através de uma ferida pútrida e recente.

Ajeitei as vestes tradicionais em meu corpo, capturando minha coroa, observando o detalhe da cobra pintada e encrustada nela, sendo o símbolo de proteção de outros faraós antes de mim, e esperava eu que fosse a proteção dos meus filhos em Roma, que regressassem em paz para sua casa por direito.

Elevei o adereço até o encaixar em minha cabeça, sentindo seu peso simbólico e que se fosse em outro momento seria uma isca para que minha mente, crescida em meio aos documentos filosóficos na biblioteca de Alexandria, tecesse comentários analíticos em metáforas e filosofia, uma das áreas de conhecimento que sempre foi meu forte.

Minhas vestes eram tradicionais egípcias, detalhadas em ouro e cores, farfalhando a cada movimento que eu fazia, assim como minha cabeça agora raspada sustentava uma clássica peruca que nunca foi comum a mim.

Nada mais justo do que morrer honrando a cultura e tradição do país em que lutei pelo poder durante toda a minha vida.

Resignei-me quando uma de minhas sacerdotisas de Isis afirmou que as tropas de Otaviano estavam invadindo o Egito, prontos para pedirem pela minha cabeça e de Marco Antônio, sendo este último afundado em melancolia pela nossa fuga na batalha de Actium. Pensei em fugir uma última vez, inclusive já havia uma tropa de navios prontos para navegarem com toda minha riqueza e meus filhos para Índia, para criar um novo império, porém os mercadores de Petra me traíram ao queimarem cada embarcação, encurralando-me.

Fugir era desonroso, mas era melhor do que ser morta em praça pública em Roma enquanto era humilhada junto à meu amante e filhos, porém, por sorte, consegui deixar os últimos escondidos "a estudo". Estavam protegidos e eu pedia aos céus que continuassem, que não vivessem o que vivi ou que tivessem meu destino.

Os romanos me chamavam de sedutora, mas no fim das contas, eu era apenas inteligente demais comparada a cada um daqueles homens que me subestimaram ao mesmo tempo que estimavam unicamente a força física, não aprendendo nada com meus antepassados Gregos.

VENENUMWhere stories live. Discover now