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Março de 2035

Estou sozinho na antiga cobertura da família do meu pai.

Não há nada para fazer senão olhar a vista para a praia vazia do Leblon, as luzes já acesas na rua lá em baixo e ouvir os sons da cidade entrando pelas grandes janelas de vidro abertas.

Vou até o quarto que costumava ser do meu pai, demorando um pouco na vista para o mar que permite a sua sacada. Fico um tempo só ouvindo as ondas e sentindo a brisa, antes de fechar a porta dupla de vidro e voltar a minha atenção para o interior do quarto, que ainda está cheio de pôsteres de bandas de Rock e pilhas de CDs antigos.

Abro o armário de duas portas e vejo a sua guitarra da época de Carioca Trash — sua última banda —, uma Gibson 62' SG Jr. White Fox, faltando uma das cordas. Há também mais CDs, de Os Mutantes, Barão Vermelho, Capital Inicial, Titãs, junto de bandas internacionais como ACDC, Ramones, The Misfits, The Runaways, Nirvana, Guns and Roses, Deep Purple... — olho para os CDs com desinteresse, rock nunca foi muito a minha praia —, algumas tralhas velhas que não sei para o que servem e caixas de papelão empilhadas.

Bisbilhoto o conteúdo da primeira caixa, que varia de um par de meias-arrastão furadas, cordas para guitarra, um maço de cigarro cheio de anéis de prata, uma gravata vermelha, duas latas de spray..., mas a minha atenção é retida por um pequeno caderno de capa rosa e dura, um pouco acabado. O abro e encontro um aviso na primeira página. Não a nenhuma data, mas é possível perceber que foi escrito a um tempo atrás, pois a tinta da caneta azul está um pouco mais clara.

AVISO AO CURIOSO

Depois de alguns eventos que me aconteceram (ou será que foi tudo invenção?), sinto que preciso começar a registrar o decorrer dos meus dias. Então, vou fazer disso mais um livro do que um diário, porque a ideia de ser completamente honesto me assusta. Gosto da liberdade do romance e tenho a mente fantasiosa. Não espere de mim clareza e fatos verídicos, não espere de mim o presente, não espere um garoto de carne e osso, mas um personagem, uma criação. No fundo isso é tudo o que eu sempre fui.

Apenas as pessoas envolvidas nessa história poderão dizer o que é e o que não é realidade. Fica aí o aviso. Se você encontrar esse anti-diário por aí — porque eu tenho tendência a perder tudo o que é meu —, pode abrir e bisbilhotar, eu não ligo. Estou criando essa barreira dês de já, que te impede de saber com certeza se estou ou não sendo verdadeiro.

Acredite no que quiser acreditar.

Ps: Apesar dos pesares, apesar do que posso vir a dizer, fui, no tempo da minha juventude, extremamente feliz e o azar esteve presente apenas para impulsionar a sorte.

Acredite em tudo o que puder acreditar.

Juno

E é obvio que eu não paro a minha leitura por aí. Estou curioso demais para descobrir quem é o dono deste diário, ou melhor anti-diário, e que ligação ele tinha com o meu pai para ter algo como isso guardado nas coisas dele. 

Carioca Trash • pjm + jjkOnde histórias criam vida. Descubra agora