Meus Primeiros Passos pela Praia da Vida

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      Eu não sei se havia algo antes, mas em minhas mais vívidas memórias, lembro daquela forte luz que fazia com que meus olhos se abrissem; daquele vento frio que entrava pelas frestas da janela e causava certa agonia em meu pequeno corpo e em seguida daquele abraço quente que em poucos segundos dissipava meu choro e me fazia sentir tão querido e protegido. Talvez  tenha sido a melhor sensação de minha vida e também a única lembrança que tenho da presença viva de minha mãe. Depois disso, tudo fica escuro e eu já me vejo engatinhando em meio àquelas outras crianças que não paravam de brigar entre si, ao mesmo tempo em que pareciam brincar. Uma delas acertou uma pedra em meu olho, creio que essa foi a primeira vez que meu corpo sentiu tanta dor...

      De repente ouço a porta bater na parede. Passos fortes adentram o cômodo onde estou, fazendo com que em um instante todos ali se calassem. Um velho alto e forte me vê chorando, me pegando no colo. Este vê as pedras na mão do menino que me acertou. Passando um lenço sobre o machucado, ele seca minhas lágrimas e olha fixamente em meus olhos, dizendo com aquela voz firme:

  — Se quer mesmo viver nesse mundo e mais tarde ser um homem de honra, não deixe que as pessoas te machuquem. Luigi lhe acertou uma pedra, tome, quero que bata no mesmo lugar que ele te feriu usando este pedaço de pau!

      Senti-me assustado e coagido com aquela ordem que me fora dada. De todas aquelas crianças eu era o único que nunca havia sido chamado por um nome, mas, as leis naquela casa eram iguais para todos. Se você quisesse ser o primeiro a comer, receber a melhor fatia do bolo, provar das maiores frutas, receber honra e reconhecimento, você devia ouvir e reproduzir o que aquele velhote mandava. Naquele momento eu tinha a certeza de que mesmo contra a minha vontade, se eu não revidasse o machucado que recebi, meu castigo pelas mãos de meu tutor seria dez vezes mais doloroso.

      Luigi era um dos mais velhos, e ao contrário de mim, sabia andar e correr. Mas isso não impediu o rabugento de segurá-lo pelos braços, fazendo-o começar a chorar e se espernear. Olhar naqueles olhos azuis cheios de lágrimas, expressando um arrependimento, uma culpa, ou talvez simplesmente medo da dor que sentiria era de cortar meu coração. Minhas mãos tremiam e meus pés quase recuavam, mas os gritos furiosos e sádicos do velho me faziam engolir seco. Empunhava a madeira cheia de pregos com as duas mãos. Fechei os olhos e golpeava em linha reta. Ao abrir meus olhos, a sensação que aquela visão me causara fora pior que a da minúscula dor que o menino me causou e já havia passado. O prego havia perfurado o olho esquerdo do pequeno que agora agonizava e fazia o sangue se espalhar por todo o chão de madeira. Em gargalhadas, o tirano o soltou e logo me pegou no colo, me beijando a bochecha e gargalhando alto, dizendo:

   — Parece que meu pequeno bastardo se tornou um homenzinho! Daremos uma suntuosa festa para comemorar, meus parabéns de qualquer forma, hoje você vai comer e beber de tudo o que se pode imaginar que seja gostoso nesse país!

      "Bastardo"... Era esse o termo usado por todos como referência a mim. Naquela noite, o velho a quem era popularmente chamado de "Padrinho" mandou dar uma festa. Pessoas bem vestidas chegavam das redondezas e até mesmo de longe, trazendo garrafas de suas melhores safras de vinho e os mais variados quitutes. Me lembro de colocarem um banquinho alto sobre a cabeceira da mesa. Bandejas prateadas serviam-me a todo tempo, aquela também foi a primeira vez que fiquei embriagado... O velho era tão perturbado que me fez beber uma caneca generosa de vinho. Músicos tocavam alegremente e as pessoas pareciam estar se divertindo, a ponto de estarem totalmente distraídas.

      Uma semana depois, o olho de Luigi parecia uma poça de sangue preto que não melhorava de jeito algum. Ele começou a sentir febre e sua pele ficou pálida, com uma aparência de que estava "descascando". Mais uma semana se passou e ele morreu de tétano, mas por alguma razão aquilo não provocou qualquer emoção ou culpa em ninguém daquela casa, a não ser eu, e digo mais, foi a sensação mais estranha do mundo. Você convive com uma pessoa, ouve essa pessoa, e a vê correr, chorar, sorrir, viver... De repente ela está parada, imóvel e sem reação alguma. Não consegui comer direito por muito tempo ao pensar naquilo, mas, foi apenas o começo.

      Após aprender a andar perfeitamente, por volta dos meus quatro anos, fui colocado junto às outras crianças aprendendo a realizar as mesmas tarefas que elas. Eu não me importaria de pegar em uma enxada, colher frutos, hortaliças e ajudar na organização da casa, porém, além disso, eu fui obrigado a ter lições frias que pouco a pouco mancharam minhas mãos. Eram elas desde enforcar aves, mutilar porcos, executar os bois com aquela rústica e potente espingarda, ou dissecar os peixes que eu pescava no rio, uma tarefa um tanto bruta para com os seres vivos que sem ao menos escolher, se tornariam meu alimento. Com o tempo, aquela tarefa já havia se tornado uma tarefa até comum para mim, embora ouvindo as conversas e negócios sujos que aconteciam na sala do velhaco e o jeito que as pessoas revelavam seu caráter oportunista e podre, parecesse muito mais satisfatório para mim tirar uma vida humana que daqueles pequenos animaizinhos que não faziam mal a ninguém.

      O tempo então se passou, foram anos e anos de mesmice misturada à uma educação muito rígida. Lembro de poucas vezes ter me divertido. As outras crianças quase nunca me escolhiam para brincadeiras ou afins, pois eu simplesmente não conseguia ver ou trazer a graça às mesmas. Passava maior parte do tempo com o velho, ajudando-o com trabalhos braçais.

      Anos se passaram. Por volta dos meus sete anos e meio, embora chamado de bastardo e recebendo comentários infames, eu com certeza era o que mais causava impacto naquela fazenda, entre aquelas crianças e até mesmo de forma intelectual, ao opinar nas conversas adultas do velho com suas visitas. Isso fez com que certo dia, com uma expressão um pouco triste e receosa, se ajoelhando à minha altura, e colocando a mão sobre meu ombro, disse o Padrinho em curtas e inconsistentes palavras:

  — Ouça pequeno bastardo... Não tenho muito tempo para conversa, nem sei dizer se essa é uma boa ou má notícia. Vista sua roupa mais elegante, perfume-se e me encontre na cocheira. Você se provou o mais forte e honrado homem dessa casa, e graças à isso, você provocou atenção. Agora vá, está na hora de conhecer o homem que te colocou neste mundo.

Por Baixo da CascaWhere stories live. Discover now