As Duras Realidades

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      Corri pelo corredor e saí pela janela dos fundos que ficava na cozinha. Não conseguia acreditar naquela sórdida realidade.

      "Meu avô era um ex mafioso, quando criança, não entendia direito o que ele conversava com as pessoas estranhas que iam em nossa casa, mas hoje em dia me lembro bem. O nível de conversa deles era igual à podridão do meu pai. No fim a vida é uma guerra onde cada um quer mais poder pra si. Agora tudo fica claro... Minha mãe era uma boa pessoa, mas assim como eu, foi cercada de tanta sujeira.", pensei, enquanto corri chorando em direção à praia. Minha cabeça dura e meus ímpetos emocionais não me permitiram ficar para ouvir o resto da conversa:

  — Mas ainda assim somos uma família. Bianca, você, eu, toda essa casa se alegrou com a chegada desse bambino. Mesmo que o perigo nos bata a porta, família significa jamais abandonar.

      Disse Magnólia, a mãe de Bianca.
Bertoldo concordou, embora tivesse estranhado o barulho indiscreto que emiti enquanto corria.

  — Foi isso que eu quis dizer. Espere aí, querida, escutei um som alto aqui dentro. Suba no quarto e veja como estão as crianças.

      Bertoldo foi até a cozinha e viu a janela escancarada. Magnólia subiu e não me encontrou dormindo, Bianca por sua vez acordou com aquele embalo. A preocupação tomou a todos que num instante saíram à minha procura pela casa, sem êxito.

      Nessa altura eu já havia deixado o pijama na areia e mergulhado naquelas grossas e altas ondas do mar noturno. A maré estava alta e a correnteza forte, mas nada disso me impediu. Queria que de alguma forma me fossem lavadas aquelas emoções horríveis. Voltei, vesti-me novamente e sentei em prantos na areia, de cabeça baixa. Sentia um medo tão grande que até mesmo o assobio do vento me assustava, fazendo-me olhar para os cantos. Enquanto isso...

  — Encontraram ele?

     Bianca parecia bastante aflita, revirando cada canto da casa, até mesmo dentro do forno. A preocupação aumentava à medida que o tempo passava e meu sumiço se prolongava.

  — Ele deve ter escutado nossa conversa. Eu lhe disse que pensamento negativo atrai coisas negativas. Você sabe o que acontece com quem é pego à noite andando pelas ruas!

      O pai de Bianca parecia nervoso. Sua esposa não retrucou, apenas continuou a me chamar em todos os cantos. Eu já estava longe de casa, seguindo por uma pequena rua deserta que era acessível pela praia. Caminhei por um pedaço até começar a notar que as casas já haviam ficado para trás. Uma ladeira sombria, cercada de árvores se colocava à minha frente. Era pavoroso, mas continuei a seguir, mesmo com o som das corujas, morcegos e animais da noite. Por estar caminhando de cabeça baixa, o susto foi ainda maior quando cheguei ao fim da ladeira e olhei pra frente...

  — Mas... Mas o que? Isso é um...

      Estava cara a cara com um cemitério. Era a primeira vez na vida que me deparava com um. Aquele monte de sepulturas, um clima mórbido sob aquela noite de lua cheia e pra variar aquela neblina... "Então é para cá que todos vão quando morrem... Não é à toa que contam histórias de terror e passam medo sobre esse lugar.", pensei, empurrando com as mãos trêmulas o portão de grades, o qual fazia um ruído estranho ao abrir.

      Entrei, olhando para os lados a cada som diferente que ouvia. Mas não havia nada ali, monstros, fantasmas, estando lá dentro parecia até ser um lugar de paz. Tudo o que as pessoas diziam era um reflexo do medo do desconhecido. Caminhando por entre os túmulos cheguei à conclusão:

  — Que lugar injusto! Pessoas boas e ruins enterradas lado a lado... O algoz no mesmo lugar que a vítima. O ladrão no mesmo lugar que o honesto. Deveria haver uma prisão onde as almas ruins sofressem para toda a eternidade enquanto as boas seguissem para o descanso!

      Caminhei até a capela, situada no ponto mais alto e sentei no telhado, tendo uma visão de todo aquele lugar. Por um instante me veio à mente:
     
       "Então em um lugar assim pessoas boas como minha mãe e meus irmãos descansam ao lado de pessoas ruins e gananciosas como meu avô e meu pai? Por que minha vida não podia ser mais simples?"

      Após este pensamento, recordei a visão que tive após levar aquele tiro meses atrás. As almas de meus irmãos, minha mãe, a caixa do caranguejo dourado! Algo me falou nitidamente que a resposta poderia estar naquela urna. "Vou abri-la de uma vez por todas!", pensei. Afiei o olhar, um sorriso determinado se formou. Em um salto, desci do telhado da capela, saltando por sobre os túmulos e abrindo novamente o portão, com um chute.

      Sem olhar para trás, desci a ladeira e trilhei de volta o caminho de casa. Chegando lá, encontrei a porta semi aberta. Bertoldo estava dormindo no sofá ao lado de Magnólia e Bianca caíra no sono sobre os pés dos pais, ainda segurando um prato com uma vela acesa, quase no fim. A casa em peso estava revirada. "Eles... Estavam me procurando...", pensei.
 
      Subi as escadas, abrindo o armário e arrastando minha imensa caixa dourada para fora. Empurrei a tampa com toda a força possível, mas nada aconteceu. No fim, fui vencido pelo sono e exaustão, dormindo com o rosto sobre a tampa da caixa.

      No dia seguinte, acordei. Tudo parecia arrumado em seu devido lugar. Minha face e meu pescoço estavam meio doloridos devido ao sono sobre aquela urna dura e quadrada. Recuperei a consciência, caminhando até a janela, onde abri os braços e me espreguicei. O dia estava nublado, do jeito que eu gostava. As nuvens fechavam o céu e o deixavam todo branco, era lindo!

      O quarto do casal estava vazio, a cozinha também. Caminhei na ponta dos pés até a sala de estar, onde todos sentados no sofá me saudaram de uma só vez, com alegria:

  — Bem vindo de volta, nós te amamos!

Por Baixo da CascaWhere stories live. Discover now