Um Banho Vermelho de Desgraça

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  — Benito, Enrico! Ah, droga! Acordem por favor, seus idiotas, vamos pra Sicilia amanhã!

      Sacudi os gêmeos mais velhos, mas estes estavam pálidos. Benito havia levado dois tiros nas costas. O tapete branco de lã de ovelha agora estava banhado com aquele sangue inocente. Enrico levou vários na cabeça, fazendo com que metade superior de seu rosto estivesse totalmente estraçalhada. Vi uma trilha de sangue pela escada, no segundo lance, aquela mão cor de pêssego estirada no chão, me dirigi até ela gritando:

  — Madalena! Ah, essa não... Você sempre foi a mais forte, por favor, onde estão os outros?! Eu vou cuidar de você, eu prometo, eu vou salvar todos, eu só preciso achar o Padrinho! Vovô, onde você está?!

      Soltei a mão dela, que tombou novamente no chão sem demonstrar qualquer reação; havia sido baleada no pescoço. Continuei a subir a escadaria, me dirigindo ao quarto de meu avô, mas ao passar pela porta do banheiro, vi aquele rastro de sangue no chão, instintivamente entrava, mas o resultado não era nada diferente. Giulia, que era pouco mais de um ano mais velha que eu, estava inteiramente cravejada de balas. Meu pavor não me permitiu nem chegar perto. Engoli o choro de pavor e corri para o quarto de meu avô e lá estava ele, com filetes de sangue descendo pelo canto de sua boca, vários buracos de bala no peito e na barriga, mas ainda acariciando a cabeça de Rita, que estava caída com uma bala lhe atravessando o rim. Coloquei as mãos na cabeça e soltei as lágrimas, correndo até este que falava com dificuldade:

  — Bastardo... Eu... Disse para você ficar lá... No fundo eu... Sabia que isso iria acontecer...

      Não consegui me segurar, soluçante me ajoelhei e coloquei a mão no rosto pálido e gelado de meu avô, tentando de tudo para reverter aquela situação:

  — Eu estou aqui, não precisa dizer mais nada vovô... Eu vou chamar alguém, eu prometo!

      Lá no fundo eu sabia que nada daria certo, mas não queria deixar a esperança morrer. Senti o toque daquela mão calejada e velha sobre a minha e mesmo com dificuldade, pude ver aquele sorriso sincero se formar no rosto do velho rabugento, que deixava respingar gotas de sangue cada vez que soltava uma palavra:

  — Ouça Bastardo... Quero que... Siga para a Sicília, lá você... Estará seguro. Antes de tudo, pegue a chave em meu bolso e... Abra a pequena caixinha ao lado... Do retrato da sua mãe. Não deixe... O sonho dela morrer, Bastardo... Não deixe... Não... Bastar...

      Foram as últimas palavras dele. Seu rosto caiu sobre o ombro e suas mãos escorregaram de uma vez. Comecei a tremer e ter espasmos violentos, já deixando com que as lágrimas escapassem avidamente. Enfiei a mão trêmula no bolso do macacão do Padrinho e lá estava aquela singela chave dourada. Com ela, levantei-me inteiramente abalado, mas por fim consegui abrir a caixa. Nela havia várias coisas de minha mãe, como seu primeiro dente de leite, seu primeiro cabelo de bebê, sua primeira boneca, etc. Era notável que o velho rancoroso guardava com carinho, protegendo da ação do tempo tudo o que era de minha mãe no passado, inclusive uma carta enrolada em uma fita vermelha. Encostei-me na parede, abrindo o papel que possuía vários relevos que pareciam ter sido lágrimas de meu avô ao ler. A luz da lamparina me permitia ler aquela bela, porém, apressada letra que preenchia toda a folha de papel:

    -  "Querido papai, a quanto tempo não lhe chamo assim. Creio que antes de qualquer coisa o senhor verá que esta carta acompanha um menino, mas o propósito da mesma não é implorar que o senhor fique com ele, muito pelo contrário. Este é seu último neto. Infelizmente não tive tempo o bastante para dar um nome a ele, nem fui capaz de permitir que ele carregasse o nome que o crápula do pai dele queria lhe dar. Agora chegamos à má notícia. O senhor sabe que para sobreviver tive que me submeter aos trabalhos sujos da noite... E dessa vez acredito eu que seja meu arrependimento por isso, tardio, porém sincero. Este menino é filho de Don Lorenzo, chefe da máfia portuária de Nápoles. Ele me pediu em casamento há duas semanas, quando o menino nasceu, e o senhor sabe muito bem... Fugi de casa há tantos anos pois não agüentava seu tratamento bruto e exigente para comigo, eu muito menos aceitaria passar o resto da vida sendo traída, ludibriada e correndo risco de vida ao lado de um traste tão imundo, ainda por cima, vendo meu filho ter a mente deteriorada pela educação dele. Mas o senhor irá me perguntar: Mas filha minha, este é só mais um filho, que diferença faria?" Não, este não é só mais um filho. Acredito que ele tenha sido meu maior de todos os desafios e talvez a maior de minhas conquistas. Nascido sob o nascer do sol em 24 de Junho de 1964, pelas mãos da parteira Vulpina, este menino sofreu muito desde o começo por ter nascido cerca de vinte e oito dias antes do estimado. Ele tem uma saúde muito frágil, porém, creio eu que um coração imenso. Um mês antes de seu nascimento, vi um rapaz forte, alto, irradiando uma imensa luz dourada. Ele vestia uma longa capa branca e trajava uma belíssima armadura que parecia ser toda feita de ouro puro, com um toque das próprias estrelas. Lutava pela justiça do mundo com as próprias mãos, era temido pelo mal e respeitado pelo bem. O seu nome era a própria justiça e verdade. Quando este menino nasceu, sua cor, seus olhos, cabelos, eram iguais aos daquele rapaz; não havia dúvidas que aquele sonho fora uma visão translúcida do futuro. Então, peço que por favor, querido pai, mesmo que ao fim desta epístola o senhor passe a odiar mortalmente este bambino, cuide dele com o amor que cuidaste de mim. Eduque-o da melhor forma possível, nunca o deixando para trás de seus irmãos. Eu tenho certeza de que ele lhe dará a honra que eu não fui capaz e será o seu melhor amigo e companheiro. Agora é hora de me despedir, irei dar o resto de meu dinheiro para o carroceiro e o mesmo levará meu filho e esta carta em segurança ao senhor. Lorenzo? Com certeza irá me matar logo depois, este é o destino de qualquer coisa viva que o desobedeça ou cruze seu caminho obscuro. Jamais o deixe se aproximar de meu pequeno, se necessário, fuja para a casa dos amigos de nossa família, na Sicília. Adeus meu querido pai, não me resta a oportunidade de voltar no tempo e refazer o erro que cometi, mas me resta a fé que deposito junto com todo o meu amor à esse menino. Eu te amo muito. Sua filha Valentina."

      Então esta era a carta da minha mãe. Não consegui segurar meu choro repleto de sofrimento e amargura, talvez tenha sido a vez que mais chorei em toda a minha vida. Fechei os olhos de meu avô, guardei as coisas de minha mãe em uma sacola e arrastei todos os corpos para a sala. Fiz uma última oração às imagens de santos que meu avô tanto acreditava antes de derramar o querosene das lamparinas por toda a casa, derrubando-as no chão. Saía correndo pela porta sem olhar para trás, embora sentisse a intensidade e o calor do fogo que devorava vorazmente a casa detrás de minhas costas. Voltei ao estábulo, peguei minha mala, e com o sangue que abundava em minha roupa branca e minha pele, escrevi sobre o veludo branco da mala a palavra "Sicília". Lembro-me de seguir correndo, saindo pela última vez da fazenda até a estrada de barro fora do cercado, esta fora a memória mais confusa que tive, pois após tal feito, escutei aquele barulho que se assimilava a um trovão, partindo de uma distância de cem metros, mas logo um projétil violento me acertou pelas costas que antecedia novamente aquele som de motores se ligando, mas dessa vez aquela máquina sobre rodas se afastava de vez, dirigindo-se de volta à cidade; tudo ficou escuro. Este era o fim? Não, este não era o fim... Se aquele fosse o fim de tudo, com certeza eu estaria me defrontando com o nada, mas aquelas chamas verdes por toda a parte e aquelas pessoas andando em fileira rumo à uma colina cujo centro possuía um imenso buraco escuro pareciam-me totalmente reais, reais até demais. O ar dali era pesado e rarefeito, em meio àquela grande marcha podia ver figuras familiares, literalmente! "Meus irmãos? Vovô?!" Pensei, correndo desesperado na direção deles até o momento que um brilho dourado e quente surgiu em minha retaguarda, junto daquela voz tão doce e feminina que dizia:

  — Não vá. As pessoas que caíram nesse buraco jamais retornaram.



Por Baixo da CascaWhere stories live. Discover now