Aquele à quem Devo a Vida, ou Talvez a Morte

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  — Meu pequeno Bastardo, eu também queria que fosse assim, mas é justamente isso que temo. Se ele pedir que você fique com ele, é isso e ponto final. Aquele homem não tem qualquer bom senso à não ser por ele mesmo. Sei que parte foi minha culpa, mas... Posso dizer que graças à ele me foi tirada a coisa mais preciosa para mim...

      Prestava atenção nas palavras do velho que por sua vez tinha um jeito um pouco engraçado de falar, gesticulando as mãos, como se fossem conchas. "Essa é a primeira vez que falo tão de perto com ele, não me admiro ter notado isso agora...", pensei. Minha vontade de ter aquele encontro foi reduzida à zero. Se bem que, eu não fiquei tão surpreso, afinal, aquele mesmo homem me abandonara. "Que coisa preciosa teria sido essa? Espera aí...", pensei novamente. Uma pequena luz piscou em minha mente, levando-me à fazer aquela pergunta repentina e inusitada:

  — Padrinho, eu sempre te vi chorar no quarto e até mesmo beijar o retrato de uma moça loira. Os olhos dela eram bem parecidos com os meus... E de repente minha cabeça rodou um pouquinho depois dessa conversa. Se eu estou indo conhecer o meu pai, eu também tenho uma mãe, certo?

      Ele parou, ficou estático. Sua mão escorregou por minhas costas e bateu no banco de madeira; aos poucos foi ficando pálido e com os olhos úmidos. Movi-me por impulso alguns centímetros pelo banco, um pouco assustado com a reação dele. "Será que eu não deveria ter perguntado isso? Não acredito que vou levar a primeira surra dele", imaginei. Mas foi totalmente o contrário, ele parecia ter se derretido como margarina fresca ao fogo. Algumas lágrimas desceram por sua face, mas logo foram enxugadas avidamente. Soluçou em meio ao choro, brevemente recuperou o fôlego, deixando que toda a sua mágoa fluísse. Agora tudo faria sentido:

  — Vou ser claro e resolutivo... Não entrarei em detalhes. Ela se chamava Valentina, minha única filha... Era uma menina esperta e dedicada, uma flor que eu não soube cuidar. Largou tudo e fugiu de casa aos dezesseis anos, jurando nunca mais me procurar... Meu orgulho de pai, ou melhor dizendo, meu ego inflado não me deixou ir atrás dela... Sem ter o que comer e onde morar, foi parar em um bar noturno e lá entrou no caminho da prostituição, mas isso não calou o coração bom e caloroso que ela tinha. Ficou grávida sete vezes, e em nenhuma delas matou suas crianças, aquelas que você conhece como colegas na fazenda, seus irmãos mais velhos... Cuidou delas durante o período necessário, e as mandou para que eu cuidasse e criasse. Não pude recusar, elas eram a continuação daquilo que eu maltratei e deixei partir... Embora eu não conseguisse mais amar da mesma forma que antes... Até que... Ela conheceu seu pai e... Naquela noite você chegou com a carta que anulou minha vida e me fez perder o apego por tudo para sempre...

       Ouvi toda aquela história em meio às trepidações da estrada de barro pela qual a carroça continuava a seguir. O empregado mantinha-se em sua posição, indiferente à conversa que ocorria detrás de suas costas. Minha cabeça girava como se houvessem vários furacões ao mesmo tempo dentro dela. Embora eu soubesse que o fim daquela história provavelmente seria triste e impactante, a curiosidade me impulsionava a querer ouvir até o fim, fazendo-me indagar:

  — Então o senhor é meu avô? Sei que é triste para o senhor contar isso, mas por favor, o que aconteceu depois? Onde está minha mãe?

      Foi a primeira vez que o empregado olhou para trás, me encarando brevemente com uma expressão que indicava que eu cometi um grande erro fazendo aquela pergunta. Podia ver de longe as formas da cidade grande surgirem no horizonte que atravessava aqueles campos que eu jurava não terem fim. A ansiedade tomou conta do velho, que deixou uma gota de suor frio descer de sua testa até seu queixo, de onde pingou. Este soltou o ar pela boca e continuou a contar:

  — Seu pai queria casar-se com ela e assumir sua paternidade, mas se ela fugiu de mim por não suportar meu caráter, muito menos ela aguentaria viver no mesmo teto que aquele homem, ainda por cima ver o filho que ela gerou receber a educação selvagem de um vigarista como ele. Ela escreveu rapidamente aquela carta que dizia que independente do que acontecesse, você era a maior realização da vida dela e que mesmo que eu te odiasse mortalmente, jamais te maltratasse ou diminuísse. Pedindo perdão por não ter tido tempo para lhe dar um nome, mas não queria que você carregasse um que tivesse sido dado por aquele canalha. Por fim, se despediu e disse que me amava. Foi a última vez que tive notícias dela... Aurelio, o homem que guia esta carroça recebeu os últimos trocados que ela tinha, e lhe trouxe às pressas para a fazenda, na calada da noite. Ficou refugiado por desobedecer as ordens de seu pai e ter consciência do que acontece com quem o faz. Então...

      Eu nunca havia visto aquele rabugento chorar tanto na minha  vida. Na maioria das vezes ele parecia tão duro quanto um pão dormido. A partir desse ponto, Aurelio passou a olhar mais para trás, um tanto nervoso com a conversa. Parecia que os momentos citados por meu avô ainda viviam na cabeça de ambos. Meu coração estava pesado assim como minha cabeça, minha respiração um pouco ofegante. Passávamos pela placa que anunciava que estávamos adentrando a cidade. Humildes casas podiam ser notadas à beira da estrada, que agora era feita de pedras colocadas lado à lado. Mas ainda me restava apenas uma questão:

  — Então... O que aconteceu com a minha mãe?

      Sabia que a resposta não seria nada boa, mas ainda assim, perguntei. Boa parte do que sou hoje começa à partir desta resposta. Para mim foi absurdo, mas não tão surpreendente. Eu já sentia uma mistura de repulsa e desprezo pelas pessoas e pela sociedade, agora, brotara em mim o ódio, por uma pessoa que eu ainda nem havia conhecido, ao ouvir aquelas palavras curtas e grossas, repletas de uma raiva que cerrava os punhos do Padrinho:

  — Ele e seus homens, ou melhor dizendo cães fiéis... Abusaram de minha filha, depois ele a matou.

Por Baixo da CascaWhere stories live. Discover now