Desejo de Vingança

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     Após sair do cemitério, voltei correndo para casa. Já era bem de dia e provavelmente notariam meu sumiço. Chegando lá, a porta da frente estava aberta e os pais de Bianca conversavam. Encostei as costas na parede e peguei um pedaço da conversa:

  — Sim, ele sumiu, mas embora saibamos quem foi... Também sabemos como funcionam as coisas aqui desde que Giuseppe Lanzoni abriu mão de seu cargo e foi terminar sua vida no campo...

      Uma mulher chorava, sendo abraçada e consolada pelos senhores Bertoldo e Magnólia. Com um pouco de sono sono, minha cabeça não funcionava muito bem, mas, espera aí...

    — Fique calma, mama Roberta, infelizmente é assim desde que o Padrinho Giuseppe foi embora e deixou a máfia nas mãos de gente tão ruim. Ele sempre se culpou por ter deixado sua única filha ir embora por causa de seu trabalho que não o permitia dar atenção a ela. Mas fique calma por favor, a senhora tem filhos, se parecer desesperada o pior poderá acontecer.

    Magnólia abraçava a idosa e tentava lhe confortar com palavras. Parecia que o marido dela havia sumido. Era típico da máfia Siciliana raptar pessoas que não pagavam pela suposta "segurança" que ofereciam. Ou simplesmente desaparecer com inocentes que andavam pela rua à noite.

  — Isso tudo é medo. Esses covardes sabem que Don Lorenzo de Nápoles é muito mais forte e rico que eles, e pode aparecer a qualquer momento, então eles catam migalhas dos inocentes para se manterem de pé! Mas acredito que as coisas vão ser piores, pois Lorenzo sempre foi mau e egoísta...

      Retrucou a senhora Roberta com valentia. Esta foi logo cortada por Bertoldo:

   — Pelo menos Don Lorenzo é rico. Mesmo que um dia Giuseppe tenha posto a ordem aqui, ele está morto agora. O que ele fazia de justiça simplesmente passou, é assim que funciona o poder. Se Don Lorenzo tomar a Sicília, ele se tornará o justo e as leis de Giuseppe o errado. Se Giuseppe não tivesse nos abandonado por uma simples dívida emocional com sua filha putanesca, nada estaria desse jeito, agora venha comigo...

      Fiquei perplexo e gelado ao ouvir aquilo de Bertoldo, que acompanhou aquela senhora para a cozinha tentando acalmá-la com água e açúcar. Minha mente girava e girava tentando assimilar tudo aquilo que havia ouvido, em especial, as últimas frases. Era dia de limpar o quintal com Bianca, mas não o fiz. Corri até o porão da casa e comecei a gritar, socando tudo o que podia.

  — O que é?! O que é a justiça?! Que desgraça de vida, que droga de seres humanos sujos que merecem a... Ai! Grr...

      Acabei por derrubar uma caixa cheia de antigas fantasias. Entre elas, uma singela máscara de caveira que caiu bem ao lado de meu pé. Abaixei-me e fiquei olhando para ela, repetindo a sussurrar:

  — Morte...

      Coloquei aquela máscara e segui para a praia com minha urna dourada. Naquele dia me procuraram em todos os cantos, mas eu estava escondido entre as pedras na ponta da praia. Não respondi um apelo ou chamado sequer, mesmo escutando os gritos preocupados de Bianca.

      "Assim como a Justiça do meu avô era boa, e após ele deixou a máfia, ela se tornou ruim, a justiça na verdade não é sólida... Ela é como a água que toma a forma de seu jarro... A única coisa inevitável e precisa na vida é a morte. Então é isso... A morte é a única justiça que realmente existe!", pensei.

     Dediquei todo o meu tempo naquele último e árduo treinamento. Durante dias consecutivos tentei invocar as almas dos meus irmãos de todas as formas possíveis. "Manipular a forma de seu cosmo, invocar as almas, dar às almas a forma de seu cosmo."

      Mantinha essas lições em minha mente. Consegui obter certo êxito. Fiz com que as almas de meus irmãos aparecesse na forma se seus rostos infantis e angelicais, na parede que as rochas formavam na praia; logo depois as libertei. Durante aquela mesma tarde meu treinamento fora produtivo e fluente.

  — Então essa é a forma da justiça?! Expurguem, almas imundas!

      Meu sentimento de ódio e vingança fazia com que eu invocasse as almas de mais baixo nível. Assassinos, presidiários, estupradores; torturava-as e manipulava-as das mais diversas formas. Por alguma razão, mesmo após tal treinamento, a caixa não abriu. Ensandecido e obcecado, continuei a praticar daquela forma durante o resto da noite. Ainda não tinha controle total sobre os espíritos malignos, que por sua vez me arranhavam e me machucavam sempre que tinham a chance.

  — Vocês querem... Lutar? Então tomem isso seus carniçais!

      Foi assim durante toda a noite. Ao amanhecer o dia, empurrei a tampa da caixa com o resto de forças que tinha. Esta sequer se moveu, provocando-me um ataque de raiva:

  — Já chega! Não acredito que durante dois anos eu fui enganado... Vá para o inferno seu velho maldito!

      Rasguei o pergaminho em incontáveis pedaços, depois os joguei no mar. Mesmo após concluir todos os ensinamentos e dominar tudo que ali estava escrito, não consegui obter a armadura. Talvez minha mãe estivesse errada, talvez estivesse equivocada... Deixei a armadura e a máscara escondidas naquela parte da praia e resolvi caminhar por aí. Escalei as rochas e cambaleando de um lado para o outro, segui. Foi então que escutei aquela voz, a qual me fez olhar para trás:

  — Vejam, é ele!

      Bianca correu até mim, assim como seus pais. Esta me encheu de perguntas. Era notável sua preocupação:

  — Mas o que aconteceu? Onde está sua urna? Dio mio... Está todo machucado!

      Vergões vermelhos em meu corpo e linhas de expressão em meu rosto marcavam o intenso treinamento que decorrera. Mas era gratificante aquela recepção, embora um certo remorso me consumisse. Forçado a mentir, respondi:

  — Eu? Bem... Eu fui raptado, enganado, torturado e roubado... Não quero falar disso agora... Ah...

      O cansaço por fim me derrubou, para a preocupação de todos que me carregaram para o quarto, me deitando na cama, onde repousei. Meu sono foi tão pesado que não me lembro nem de ter sonhado, apenas de acordar na tarde do dia seguinte.

     :A partir de agora não haviam mais treinos. Na mesma noite, como o convencional, saí pela janela e fui até a praia, onde peguei a caixa dourada e vesti a máscara. Me dirigi às docas e lá encontrei dois homens armados que conversavam:

  — O chefe está uma fera! Parece que o sinistro de Nápoles colocou gente aqui no meio pra levar informação! o pior é que ninguém sabe quem é!

      Disse o homem careca ao outro, que tirou o cigarro da boca e respondeu:

  — Para de bobagem! Ainda somos maiores em número e temos um posicionamento melhor!

      Aquilo era o bastante. Saí discretamente do local, dando socos na palma se minha mão e com um sorriso sádico no rosto. Já sabia o que fazer para matar duas galinhas em uma só paulada.

      Quatro meses se passaram. As notícias corriam por aí livremente. "Os tão aclamados mafiosos da Sicília apareciam mortos em lugares diferentes. Todos eles pálidos, sem nenhuma ferida no corpo, apenas com uma expressão de pavor, como se tivessem tido a alma arrancada".

      Fui até a praia, guardando a caixa e a máscara no lugar de sempre. Lavei bem as mãos na água do mar e fui para casa. Entrei pela janela pouco antes do sol raiar. Subi na beliche e deitei sorrateiramente. Bianca ainda estava dormindo profundamente. Era chegado o dia fatídico; meu aniversário, minha tristeza, minha vingança e minha surpresa.

Por Baixo da CascaWhere stories live. Discover now