Uma Noite Eterna

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  —  Como conseguiu fugir, bastardo? Minha Santa Augustina, você por acaso tem noção do que é cruzar o caminho do seu pai?! O que vamos fazer agora? Eu te disse para ficar lá!

      Ouvia as broncas de meu avô desde o começo da viagem, e olhe que já estávamos quase na metade do caminho. Mas eu preferia mil vezes ouvir aqueles sermões do velho à ter de passar o resto de minha infância ao lado daquele ser desprezível. Com certeza aquela tinha sido a pior experiência que tive até o presente momento, ter de estar cara a cara com a pessoa que eu mais odiava sem ao menos poder reagir; mas ainda havia um problema. O que faríamos agora? Continuei calado, deitado no chão da carroça, olhando para o céu e ouvindo as broncas intermináveis de meu avô:

— Escute, quero que preste atenção na estrada e veja se tem alguém nos seguindo. Não vou negar que me sinto muito melhor por você ter vindo, embora eu ainda não tenha um nome para te dar, você é o melhor bastardo que alguém pode ter. Essa noite quero que pegue sua mala e durma no estábulo, pela manhã iremos partir sem levar nada a não ser comida e roupas. Seguiremos para a Ilha da Sicília, lá teremos paz e segurança. Conheço muitos amigos lá, e além do mais a máfia Siciliana é rival à do seu pai, portanto, ele não ousará jamais por os pés lá...

      Senti uma ponta de alívio com as palavras do velhote, mas meu coração intuitivo ainda previa o pior. Mesmo assim, obedeci a ordem e observei a retaguarda durante todo o percurso. A viagem de volta parecia ter sido mais curta que a de ida, talvez pelos cavalos terem galopado mais velozmente, e pelo fato de eu estar voltando para casa, minha casa, lar onde fui criado e reconhecia como meu, bem, não por muito tempo. Estava bem escuro quando cheguei, meus irmãos, agora como eu os reconhecia, estavam sentadinhos à escada em frente à porta principal do casarão segurando lamparinas e brincando de contar histórias. Uma delas, Madalena, atentou-se ao ver a carroça chegar, correndo em sua direção, gritando:

  — Bastardo, Padrinho! Vocês chegaram tarde! Onde foram, e onde está o Aurelio?

      Disse entusiasmada, sem sequer saber o que havia acontecido. Não tive cabeça nem tempo para respondê-la, apenas retribuí o abraço quente, passando a mão por cima daquele vestido surrado, porém perfumado, alisando de leve as costas dela. O Padrinho logo cortou o momento levantando a voz e tomando a atenção de todas as crianças ali:

  — Escutem todos! Quero que arrumem suas roupas em malas ou sacos e durmam debaixo de suas camas hoje! Não quero perguntas ou choro, darei uma fruta para cada um jantar, de manhã cedo iremos sair na carroça. Eu levarei todos vocês para conhecer a praia! Vamos todos morar na praia, então apenas me obedeçam!

      Eu tinha certeza de que muitos ali estavam se perguntando o que estava acontecendo, mas por saber como era a educação do Padrinho, apenas se calaram, consentiram e entraram em casa. Aquela foi a janta mais simples e afoita que já tive na vida. Lembro me dos fios mal cozidos de macarrão sem qualquer molho ou acompanhamento. Após a curta janta, todos pegaram cada um uma fruta na cesta e sentaram lado a lado no corredor. Não sobrou nenhuma para mim nem para meu avô, mas com um sorriso forçado dissemos não estar com fome e ficamos cada um em uma ponta do corredor, observando atentamente as janelas. Todas as luzes da casa foram devidamente apagadas e as malas estavam todas prontas atrás da porta dos fundos da cozinha, exceto minha mala, a qual eu estava abraçado. Segundos tornavam-se horas e todos se dirigiam a suas camas, como o combinado, deitando debaixo destas. Ao ver um por um subir as escadas, tive a dolorosa impressão de que seria a última vez que os veria. Lembro-me de meu avô me puxando pelo braço, me levando até o estábulo onde me cobriu com um fino lençol e depois puxou uma imensa pilha de feno, jogando-a sobre mim; conseguia respirar apenas por uma fenda estreita. Antes de se retirar, ele se aproximou da pilha e disse com um ar melancólico e soluçante:

  — Boa noite meu pequeno Bastardo... Quero que prometa que não vai sair daí até amanhecer. Você sem dúvidas é tudo aquilo que sua mãe descreveu... Independente do que acontecer, eu tenho orgulho de você e tenho certeza que sua mãe também... Agora fique quietinho, tudo dará certo, os Santos não irão nos abandonar, eu tenho fé.

      Deixando estas palavras, caminhou de volta para casa. Estava quente e abafado ali dentro, mas vagarosamente meu metabolismo ia fazendo com que meu corpo repousasse, embora minha barriga roncasse de fome. Dormi, o sonho que tive era um tanto complexo; parecia se passar sobre o espaço onde ao meu redor estavam apenas as estrelas. As constelações principais destacavam-se pelo brilho dourado de suas estrelas, e por seus formatos estarem totalmente contornados, revelando sua forma verdadeira. De repente avistei meu irmão, Luigi, vir correndo em minha direção. Este estava um pouco apressado, mas seu olho parecia estar normal. Estava vestindo uma longa roupa branca que brilhava muito, seus pés estavam descalços e em suas mãos carregava algo muito reluzente. Ao chegar em mim, entregava-me aquele objeto que se assemelhava à figura de um caranguejo e dizendo que agora iria buscar meu avô e meus irmãos, passava por mim correndo.

      Acordei na mesma hora, não só pelo sonho, mas por ouvir barulhos de máquinas se aproximarem da fazenda. Podia escutar vozes de homens gritarem e chutes violentos derrubarem as portas da casa; minha vontade era de ver o que estava acontecendo, mas mantive ao máximo a promessa que fiz ao meu avô de não me mover dali, até o momento em que começou. Gritos de crianças, disparos repetidos e incessantes de dentro da casa. Os homens pouco a pouco saíram, e aquele barulho de motor novamente foi ouvido, mas dessa vez parecendo deixar a propriedade. Não consegui aguentar a pressão e saí correndo, com o lençol pendurado como se fosse uma capa, estando totalmente sujo de feno. Ao chegar em casa, a porta da frente estava arrombada. Ajoelhei-me ao me deparar com a cena apavorante e sangrenta com a qual presenciei na sala.

Por Baixo da CascaWhere stories live. Discover now