A Primeira de Minhas Viagens

154 19 2
                                    

      "Por incrível que pareça, pai e mãe são palavras um tanto incomuns para mim. Foram raríssimas as vezes que ouvi uma criança se referir ao seu superior dessa forma; mas naquele dia, o Padrinho afirmou que eu iria conhecer o que formalmente chamam de "pai". Mas a verdade é... Será que eu realmente queria? Por mais cruel, imundo e perturbado que fosse, o Padrinho foi quem me deu os princípios básicos, embora, um pouco distorcidos da vida. Me deu comida, ajuda médica, e um teto para me proteger dos fenômenos naturais, mas e esse tal pai? Eu nunca o vi, e talvez se eu não tivesse atingido meu posto de honra nesta casa, jamais o veria", pensei alto.

     Desliguei a torneira. Aos poucos aquela água fria e límpida que vinha do riacho parava de cair. Me enxuguei, enrolei a toalha e segui direto para o quarto, onde vasculhava apressadamente as gavetas, deixando amarrotar as roupas passadas que ali estavam. Vesti-me com uma camisa social branca, calcei meias de igual brancura e puxei para meu corpo uma calça azulada com um suspensório da mesma cor, completando com um cinto e sapatos pretos, ambos de couro. Dei uma passada de pente para trás em meu cabelo rebelde, e sem que ninguém visse, borrifei em meu pescoço um pouco do perfume utilizado pelas meninas, "estou pronto", pensei. Corri pelas escadas, atravessando os cômodos da casa, cruzando o vasto quintal nos arredores da casa até chegar à cocheira, onde em uma carroça guiada pelos dois mais belos cavalos, estava o Padrinho sentado, com o empregado segurando as rédeas. Subi com o auxílio do velho, sentando-me ao lado dele. A princípio fiquei em silêncio, mas a medida que o transporte me leva pela primeira vez para longe de minha residência, respirei fundo e ousei à perguntar:

  — Quem é esse homem a quem serei apresentado? O senhor sempre falou tão pouco dele, ele é mesmo meu pai?

      O vento fresco daqueles verdes campos da Itália beijava minha face. No começo sentia que o velhote tentava me ignorar e fingir não estar ouvindo. Não insisti, cruzei as pernas e fiquei a fitar o chão rústico da carroça. De repente ele passou a mão por minhas costas, me puxando para mais perto dele; instintivamente o encaro nos olhos, estes pareciam tristes e um pouco sem vida. Ele soltou o ar pelo nariz e começou a balbuciar:

  — Eu juro por minha Santa que gostaria de dizer que não, mas sim, ele é seu pai...

      Eram palavras curtas e com um ar de aparente tristeza em cada uma delas. Franzi o cenho e por um segundo desviei o olhar, voltando a observá-lo. O empregado sequer olhava para trás, apenas guiava os cavalos. Senti o abraço do velho me apertar um pouco, me deixando mais próximo daquele corpo que cheirava à bebida. Mais uma vez sua boca gaguejava um pouco, mas, soltava mais palavras carregadas de lástima:

  — Não quero que seu coração fique igual ao meu, então prefiro me calar. Apenas rezo que ele queira apenas vê-lo, e depois disso suma definitivamente de nossa vida...

      Consegui ver o rancor preencher o semblante do Padrinho. Este passava os dentes uns nos outros e logo olhava para o céu. Acompanhei o olhar dele, vendo o formato daquelas nuvens brancas que me lembravam várias coisas; como o algodão, a lã das ovelhas, entre muitas outras. Algumas delas até mesmo tomavam formas familiares. Após alguns instantes de distração, voltei meus olhares totalmente para o Padrinho, questionando-o pela primeira vez na vida:

  — Pelo visto o senhor não gosta muito dele, mas seja lá quem ele for, ele pode até ser meu pai... Mas eu não vou embora com ele. Foi o senhor que me deu tudo o que tenho hoje, e se fosse para escolher, o senhor seria o meu pai, com certeza!

      Podia se considerar um milagre. Eu nunca havia visto aquele velho rabugento reagir à um questionamento com um sorriso tão transparente. Sua mão enrugada acariciou minha cabeça, mas logo seus olhos fecharam-se. De seus lábios saíram palavras sérias me causaram arrepio.



Por Baixo da CascaWhere stories live. Discover now