A Aurora da Minha Vida

109 16 1
                                    

      Em determinado ponto da viagem, passadas quase oito horas na estrada, começou a chover. Tivemos que dar outra parada em uma pequena pensão no meio do mato onde fomos todos muito bem acolhidos por um casal de velhinhos que nos serviram uma saborosa lasanha de berinjela com polpa de tomate e quatro queijos, a qual se tornou um de meus pratos preferidos; pão italiano fresco com antepasto, na doce companhia de um delicioso e natural  suco de laranja. Após a refeição, todas as luzes a gás foram apagadas e dormimos em esteiras no chão. No dia seguinte, o galo cantou bem cedo anunciando que a chuva havia cessado e o sol estava surgindo.

  — Uah! Mas... O sol ainda nem deu as caras totalmente... Que sono!

      Disse após acordar, ainda com um pouco de dor. Por algum motivo, naquela noite eu havia sonhado com um universo dentro de meu corpo. Misteriosamente ao ir ao banheiro me olhar no espelho, o ferimento em mim causado pela bala havia sumido quase completamente! Lavei o rosto e saí, com um dos olhos ainda fechados devido ao sono. Bianca me assustou colocando aquelas mãos geladas em minhas costas ainda despidas.

  — Bu! Então você está aí... Uau, você parece ter se regenerado durante a noite. Acordei e sua caixa estava brilhando. O mesmo brilho dourado parecia te irradiar...

      Disse ela ao notar que meu ferimento cicatrizou. "Brilho dourado?", pensei. Olhei por um instante para a caixa, não sabendo o que responder à menina.

  — Bem... Eu também não sei. Vai que, o suco de ontem tinha vitamina, vai saber!

      Ouvi o chamado dos pais de Bianca que já haviam preparado as malas, anunciando que a chuva havia passado e era hora de ir. Foi uma pena não termos ficado para o café, a velhinha cozinhava tão bem...

      Retomamos a viagem naquele dia ensolarado, agora deixando para trás aquela área verde e começando a sentir de longe a brisa do mar, na qual nunca havia sentido antes em toda minha vida. Era delicioso, revigorante e fez esquecer um pouco da tragédia que havia acontecido, mas sempre que eu me lembrava, tinha um ataque de choro, embora, não revelasse a ninguém o real motivo. Dizem que quanto mais apertamos a ferida, mais a dor causada por ela se torna nula.

      Finalmente chegamos à praia, mesmo que eu ainda não conseguisse andar direito, quase implorei para tocar a areia e brincar um pouco naquela água cujas ondas formavam uma gentil e gostosa espuma. Poderia dizer que se existe amor a primeira vista, assim fomos o mar e eu. Rolei junto das ondas, catei quantas conchas eu pude, até arrastei aquela urna pesada para a areia, cobrindo-a de algas e conchas; junto com Bianca fiz um muro de pedras e areia molhada ao redor da caixa, que por sua vez brilhava e emitia aquele calor, demonstrando estar gostando daquilo. Lembro me de com a ajuda de Bianca tentar abrir a caixa. Mas esta sequer moveu um centímetro de sua tampa.
     
      Ao cair da tarde, comemos peixe que fora frito na hora, acompanhado de uma caprichada salada mediterrânea, uma delícia! Esta salada também se tornou um de meus pratos preferidos... Seguimos então pela ponte que dava acesso a belíssima ilha da Sicília, de onde ao longe, quase sumindo no horizonte era possível avistar a tão aclamada Grécia. Por um instante meu coração sentiu uma forte ligação com aquele lugar que estava ao outro lado do mar, assim como a caixa dourada brilhou como se também sentisse algo em relação àquele país.

      O sol se pôs, finalmente chegamos a uma casinha de dois andares que ficava de frente para o mar, no alto de um morro. Fui colocado para dormir em um beliche. Como Bianca tinha medo de altura, acabei ficando na parte de cima. Sorte a minha! Desde o começo eu queria dormir lá mesmo... Não demorei muito para fechar os olhos.

      "Estou seguro, mas não vou aceitar o que aconteceu. Mamãe, irmãos, vovô... Obrigado por terem me protegido e me trazido até aqui. Irei me tornar mais forte e na hora certa irei encarar aquele homem novamente. Quando isso acontecer, irei matá-lo sem piedade alguma! Depois, a vida pode fazer o que quiser de mim...", pensei, caindo no sono.

      Foi assim durante dias, que se tornaram meses. Embora a dor das perdas ainda atingisse meu coração e o desejo de justiça cada vez se tornasse mais forte, a paz e a liberdade daquele lugar eram incomparáveis. Minha pele branca feita a de um fantasma logo ganhou uma cor avermelhada, como a das pessoas que lá viviam. Bianca e eu desenvolvemos uma forte amizade e sempre estávamos juntos, seja para colher frutas escondido no quintal dos outros, brincarmos com as outras crianças, fazermos os deveres, enfim, sempre juntos. Os pais dela por sua vez me tratavam como um segundo filho. Tudo parecia perfeito para mim, até que certa noite, desci as escadas para ir ao banheiro e  acidentalmente escutei aquela conversa que me causaria mais decepção ainda com a vida:

  — Este menino que cuidamos... Confirmaram que a fazenda atacada foi a do Padrinho Giuseppe e que apenas uma das crianças que ele cuidava escapou.

      Sentados no sofá, quase meia noite os pais de Bianca dialogavam. Estavam falando de mim. Aquele homem então respondia sua esposa:

  — Todavia, ele é só uma criança. Além do mais, temos gratidão ao Padrinho por ter cuidado da Sicília durante tanto tempo.

     Indignada, a mulher retrucou. Parecia estar em desespero pela minha presença naquela casa.

  — Bertoldo, você não está entendendo! Dizem que o crime foi encomendado por Don Lorenzo de Nápoles! E o pior, não foi feito nada à respeito. Temo que esse menino atraia a atenção deste monstro para a Sicília. Depois que Giuseppe deixou de comandar a máfia que controla a ilha, Lorenzo poderia tomar conta de tudo assim que tivesse a chance!

      Bertoldo se calou por um instante. Quem cala, consente. Meu coração ficou apertado e novamente senti tudo desabar sobre minha cabeça.

Por Baixo da CascaМесто, где живут истории. Откройте их для себя