Uma Canção Solitária

193 16 0
                                    

"Debaixo do carvalho

Eles selaram o beijo

Beijo cheio de Fogo Vivo

Sagrado...

Ó ó ó...

Fogo Vivo, Sagrado...

Ó ó ó..."

A linda voz vinha cheia de tristeza. Parecia até que, entre um verso e outro, um soluço cortasse a melodia. Qualquer um poderia seguir e seguir, atravessar toda a floresta à toda velocidade, que ainda assim, nada veria.

Poderia mergulhar, pulando o penhasco abismal. Nada veria.

A canção lotaria os shows das grandes companhias de teatro, de música... Mas enchia a natureza ali somente de solidão. Pescadores nativos da ilha afastaram-se daquele trecho. Temiam serem hipnotizados por algum ser das profundezas. As mulheres trabalhavam com algodão nos ouvidos enquanto lavavam as roupas nas pedras. Nenhuma criança deveria sair de casa quando a canção começasse.

Foram muitas as vezes que pessoas ignoraram as regras e atravessaram os limites da ilha e esperaram, de frente às águas, pelo que quer que estivesse ali.

Nunca mais voltaram.

E era por isso que os pescadores estavam tentando convencer o rapazinho, um mero turista, a não deixar a aldeia depois do pôr-do-sol. "A luz afasta os demônios, por isso a canção solitária só aparece quando não temos mais Sol. Não seja teimoso!".

Completamente descrente das lendas locais, ele apenas agradeceu. Saiu com a pequena mala nas costas, de riso leve.

As horas passaram. Não houve canção. O Sol se pôs, a noite foi fria, tranquila, trazendo bons sonhos. A Lua veio, beldade prateada, sempre era fotografada e elogiada. Os turistas mal podiam acreditar como a Senhora dos Amantes podia parecer tão maior naquela pequena ilha. Um pequeno paraíso perdido.

Bem, talvez eles tenham razão.

Damas-da-noite perfumavam a noite. Os hibiscos surgiam sobre as cercas, sem marcas de vandalismo. As cercas apenas existiam para que as crianças não caíssem nos barrancos, poços, entre outros locais perigosos para os pequenos. Árvores frondosas acolhiam pássaros coloridos. Alegres.

Sempre tudo em harmonia com o clima, que nunca estava quente demais, nem nunca frio demais. Os habitantes não entendiam o que era um casaco. O suor só vinha com o trabalho de arar a terra, pescar, lavar roupas, cuidar dos animais...

As pessoas eram sábias e entendiam a hora de colher cada fruto da terra. A cada época, cada estação, sua comida mudava de sabor. Morangos enormes e saborosos davam as caras quando as suculentas mangas sumiam. E estavam bem assim.

O Sol nascia, iluminando o dia. E o turista do outro dia?

Bem, ele voltou.

Para surpresa geral, o rapaz voltou sem um arranhão. Todos queriam lhe fazer perguntas, saber sobre a noite. Saber como ele fez para parar a canção. Só que...

Ele não respondia. Tudo que sabia fazer, era sorrir. Pediu licença, foi dormir. Um sorriso de orelha a orelha.

Depois de descansar algumas horas, ele saiu novamente. Voltou quase à meia-noite. Chateado. Não quis conversar novamente. Ignorou a todos. Dessa vez nem pediu licença para passar. A música voltou como de costume.

GrimórioOnde as histórias ganham vida. Descobre agora