Cada Onda do Mar

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Você já entrou no mar à noite?

Dá uma sensação de estar vivo, de existir, ao mesmo tempo que podemos perceber o quanto somos pequeninos.

Minúsculos.

Talvez... sem importância alguma diante do Universo.

Naquela noite, com aquele vento uivando alto, eu tinha decidido que veria o que tinha do outro lado. Escolhi o afogamento, pois uma vez que começasse, eu não poderia escapar. Eu não sei nadar.

Fui enfiando os pés na areia, sentindo o frio roubar-me o calor do sangue.

Sentia aquele vento feroz, levantando meus cabelos... pareciam as Fúrias, me mostrando o caminho sem fim. O caminho do esquecimento eterno.

Pensei, sinceramente, que meus pés fossem paralisar de medo. Imaginei que meu coração fosse disparar, em auto defesa, e me dar forças para voltar e seguir para o dia seguinte.

Porém... a cada onda que me batia, agora no peito, eu sentia maior motivação para continuar.

Lágrimas começaram a brotar.

Dizem que, nessa hora, vemos nossa vida passar diante de nossos olhos. E passa mesmo. Enquanto dava cada passo, passos curtos, não hesitantes, mas muito fortes para lutar contra a força daquelas águas escuras....Eu lembrava de cada vez que pulei as ondas, em algum final de ano. Eu lembrava de como já sorri, montando castelinhos de areia, bem na beira da praia. Aquelas vezes que fui insegura, por causa do novo biquíni. Quantas vezes engoli água salgada e acabou que a água me ajudou a limpar a sinusite?

Quantas vezes lavei minhas energias ali?

Quantas vezes fui acolhida, em momentos de alegria e tristeza?

Quem sempre esteve comigo, logo abaixo do meu lar, desde meus primeiros anos de vida?

E quem me levaria agora, de volta, ao reino dos espíritos?

A cada onda do mar, eu sentia mais impulso. Como se o que eu precisasse estivesse lá... Muito longe de mim.

Parei.

Respirei fundo. Minhas pernas doíam, mas logo não doeriam mais.

Eu tremia, mas do outro lado, eu não tremeria jamais...

Aquele medo no fundo da alma, sempre romantizada, parecia que teria um fim. Aquela insegurança mórbida, finalmente sairia de mim.

Um vazio profundo. Sem ódio, sem remorso, sem amor, nem dor... Meu corpo frágil, esta casca seca, não cabia à mim. Eu não me sentia em casa. Um corpo sem asa?

Esperando que algo fizesse sentido, que sumisse tudo que estava me ferindo, dei os próximos passos. Agora tinha que fazer força com os braços.

É complicado parecer forte. É difícil ter alguém que te dê suporte. Os mais fracos pensam que você quer confete. Os mais fortes por tudo brigam, por tudo competem...

Fechei os olhos e deixei a próxima onda me levar.

Sem sentir a areia...

Sem precisar ter controle de nada...

Agora era só esperar...

...

Tive um sonho. As flores nasciam dentro do mar. E vinham até mim. Acariciavam meu rosto.

Lembro como eu não podia toca-las. Aliás, eu não podia tocar nada. A cada segundo, eu me afastava do fundo... Em direção à superfície.

Uma mão segurou meu ombro.

Quente, segura.

...

Abri os olhos.

Estava sonhando ainda?

Teria o mar me rejeitado?

O dia já vinha. Caloroso, majestoso. Forte, sem fim.

Encharcada, imaginei que fracassei. De novo, meu Deus, tenha dó de mim...

E num momento de pura sincronia, eu vi magia!

Um grupo de pessoas, vestidos como "sereias e tritões", uns verdadeiros foliões, passavam pela calçada. Estavam bêbados, sem eira, nem beira. Pensei em me juntar à eles e ir embora. Já que até nesta pequena empreitada fui uma fracassada...

Quando cheguei perto, um deles tomou um susto. Jurava ter visto um vulto...

Um homem azul, barbudo. Logo atrás de mim. Cara sisuda, chateado. "É seu pai?"

...

Em casa, seca, de banho tomado... Ajoelhei-me em meu altar.

Molhei a estátua de Poseidon, com água salgada. Pedi perdão. Fiz mais uma oração.

Sim, era meu Pai.

Meu pai espiritual.

Que mais uma vez não me deixava desistir.

Ele sabe que não entendo o mundo. Que sinto tudo, tudo demais. Então me lava, de tempos em tempos, nem que seja em lágrimas.

Amoleço, entristeço. Faz parte.

Hoje eu deixo minhas lágrimas aos pés dele. Não por algo, ou alguém... apenas uma saudade.

Coisas que nunca vi, sentimentos que nunca vivi. Lugares que nunca explorei. Pessoas que nunca abracei. Sou estrangeira, neste mundo, de passageira.

Uma experiência necessária.

Uma vez mais, agradeço e confio.

Lavei meu vazio.

Ouço o som das águas na rocha. Soam como a luz de uma tocha. Minha iluminação, pura inspiração. Forças para fluir até o fim.

Sem o Mar, o que seria de mim?

GrimórioOnde as histórias ganham vida. Descobre agora