O Gato Preto

159 16 3
                                    

Desde que comecei a "mexer" com magia, toda vez que sonhava, aparecia um gato preto. Ele só ficava me olhando. Aquele olhar dos gatos que nós, erroneamente, com nossos conceitos antiquados, achamos que estão nos julgando.

Eu poderia fazer o que fosse nos sonhos, ele estava lá.

Lembro-me de uma vez que entrei numa caverna. Fui andando, morrendo de medo, vendo rostos imaginários nas sombras sobre as rochas. Como em qualquer caverna, quanto mais fundo eu ia, mais escuro... até não dar para ver um palmo diante do meu nariz.

Foi quando eu senti aquela pelagem macia passando entre minhas pernas. Aqueles bigodinhos...Era o gato preto. Senti um terror tremendo, achando que chegara o momento em que ele se revelaria um espírito maligno e tentaria possuir minha mente, mas...

Uma luz brilhou e estendeu-se adiante. Vi, então, que era uma lanterna! O gato trazia na boca, pendurada por uma fitinha vermelha. Com toda gentileza, peguei, agradeci e em seguida, ele sumiu... eu acordei.

Foi bem curioso como os meus sonhos foram se transformando.

Passei a confiar no pequenino e ele em mim. Se eu estava caindo de um prédio, ele vinha com um par de asas. Se um monstro me ameaçava, ele rugia tão alto que parecia um leão. Se eu chorava, vinha com um lenço.

Nossa relação foi evoluindo, até um dia que, num sonho muito triste, onde eu revia o enterro de meu querido avô, o gato preto não me entregou o lenço. Ele só sentou ao meu lado e deitou a cabeça em meu colo.

Aquele calorzinho me fez chorar ainda mais...

Como eu sentia saudades de meu avô!

Acariciei a cabecinha dele, entre choro e um sorriso que não sei bem o motivo. Acho que era de gratidão.

– Gatinho... gatinho... – e fui fazendo carinho. Relembrando dos bons momentos. Aquilo não parecia mais um sonho.

As lágrimas foram secando e o coração se tornando leve. Olhei para o gatinho... e ele tinha sumido.

Sonhos e mais sonhos vieram e foram; não o vi mais.

...

Lua Cheia. Altar montado e consagrado. Perfume de dama-da-noite no ar. Eu estava preparada para mergulhar em um ritual com minhas deusas e deuses. Ajoelhei-me diante do meu espaço sagrado e comecei meus afazeres. Encantamentos, pedidos, visualizações. Aquela sensação boa de conexão que nos faz fluir e sequer pensamos. Apenas fluímos. É tão bom ser Um com o Universo. As respostas vêm em minha mente e eu simplesmente sei, como se soubesse daquilo a minha vida toda.

Uma vez uma amiga me disse que esses podem ser conhecimentos de vidas passadas...

Em minha oração final me veio, assim, sem querer, um pensamento sobre o gato preto. Como estava apenas fluindo, sem pensar demais, pedi sim aos deuses que me mostrassem sobre aquele gatinho que me acompanhou tanto e me ajudou em tempos passados.

Terminei, agradeci e caí na cama. Exausta.

Como qualquer outra atividade, praticar magia também cansa, mesmo sendo incrível. E eu sonhei. Lá estava o gato preto. Lambia as patinhas, fingindo não me ver.

Gatos...

Fui me aproximando, sem querer espanta-lo. Ele só me deu aquela olhadela de baixo pra cima. Voltou a se lamber.

Sentei-me ao lado, não muito perto, e esperei...

Eu sei ser insistente também, e fingia que não percebia que ele me ignorava. Enfim, ele cedeu. Nos encaramos por alguns segundos. Senti meu coração aquecer, mas ao mesmo tempo...

O que tinha acontecido com o nosso laço?

Parecia que éramos dois estranhos. Por que ele não gostava mais de mim?

Foi só eu pensar nesta última frase que ele veio esfregar aquela pelagem brilhante em meus pés. O ronron! Era como se, em meu coração, uma voz me dizia que não é que ele não gostava mais de mim. Era só que...

Uma moça, na mesma idade que eu tinha na época que o conheci, apareceu correndo, chorando. O gato preto me olhou, baixou a cabeça e foi atrás dela.

O vi aproximar-se devagar. Miou para ela e ela o pegou no colo. Eu não sei de onde ela veio ou porque chorava, mas sei que, só de vê-lo, o choro dela minimizou.

Ela precisava dele...eu, não.

Acordei. Um peso no meu coração, ao mesmo tempo uma energia gentil me pedia calma.

...

Algum tempo depois, voltando do trabalho, cansada, me joguei no sofá. As coisas estavam tão difíceis... O dinheiro curto. Sem tempo nem para namorar um pouco. Respirei fundo e liguei a TV. Não que eu estivesse assistindo, mas era como se me fizesse companhia. Péssimo, mas melhor que nada.

Uma chuva torrencial vinha engrossando, convidando raios e relâmpagos. Que noite! Só faltava cair a luz. E adivinhe?

Caiu.

Tomei banho gelado e fiquei sem sinal de internet. Bom, o jeito era dormir mais cedo. Talvez fosse bom mesmo...

...

Para minha surpresa, o gato preto. E a moça...

Eu os via de longe. Ela fazia algo e ele a ajudava. Assim como fez comigo. Resolvido o que estavam fazendo, ela simplesmente sumiu no ar... e ele se voltou para mim.

Olhou-me como um amigo que quer te mostrar algo e já seguiu caminhando.

O sonho foi se transformando numa espécie de floresta, e logo estávamos numa prainha de areia branca, protegida pelas árvores frondosas e a noite que vinha convenientemente.

Aos poucos, outros animais vieram, bem como outras pessoas como eu. Não sei explicar, mas sei que eram parecidas. A forma como levavam a vida, nossas crenças...

Cães, pássaros, outros gatos, outros tipos de animais. Foram se retirando após nos olharem uma última vez e se enfiarem na mata ...um últimos adeus?

Antes que eu questionasse quem eram aquelas pessoas, um rapaz disse que achou lindo o meu guia.

Guia?

Sim! Falou do gato preto que estava comigo e em seguida já começou a falar do cão branco que estava com ele. Não demorou para outras pessoas também falarem de seus animais e suas experiências. Nada que eu não já tivesse passado também.

É verdade. Como eu não pensei nisso antes? Um guia...

E por que ele sumiu, reapareceu e agora ia embora novamente?

Alguém comentou sobre isso. Afinal, todos nós pensamos a mesma coisa. A pessoa disse que talvez tivesse acabado as lições que eles tinham para nos dar. O que era mesmo possível. Percebemos também que todos nós estávamos indignados, pois queríamos nossos guias conosco, para sempre! E...mas... mas... haviam mais perguntas!

A conversa foi enevoando e de repente, percebi que estava acordando por causa do barulho da tempestade.

Corri para fechar as janelas... e avistei um gatinho amarelo numa sacola. Um filhotinho miando, lá na rua... molhado e sozinho...

Não consegui pensar em mais nada. Apenas corri, de camisola, e o peguei nos braços. Sequei aquela bolinha de pelos. Dei o leite que tinha, água e picotei um frango que estava na geladeira. Eu nunca tive gatos... meu Deus... nem sei como criar isso...e...eu tinha começado a morar sozinha recentemente... e...e...

Seu nome seria Trovão.

Aquela bolinha miante ficou calma. Comeu e se aqueceu.

Sabe... eu tinha muito que agradecer ao gato preto. Meu guia por muitos anos... Eu estava muito feliz por todas as nossas aventuras no mundo dos sonhos, na espiritualidade, mas esta era uma nova fase. Um novo eu. Eu tinha crescido e precisava de novas lições, novos desafios. Algum outro guia deveria aparecer na hora certa, assim como foi com ele.

Até lá, eu iria por as lições em prática. Comecei por aquele ser indefeso. Como eu, há tantos anos atrás...

Obrigada.

GrimórioOnde as histórias ganham vida. Descobre agora