Tommo ao Luar

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Vai ter o segundo capítulo ♥

As musas são fantasmas, e às vezes entram em cena sem ser convidadas.

— Stephen King

A chuva caía sem trégua, deixando marcas profundas nas vidraças, que tremiam sob o turbilhão do vento. A energia havia voltado na casa, embora as luminárias ainda crepitassem sem parar.

MALIBU COLONY

QUATRO HORAS DA MANHÃ

Enrolado num cobertor, Harry dormira profundamente no sofá.

“Tommo” ligara o ar condicionado e vestira um roupão duas vezes maior que ele. Com a toalha na cabeça e uma xícara de chá na mão, perambulava pela casa, abrindo armários e gavetas, entregando-se a uma minuciosa inspeção que já do conteúdo dos armários ao da geladeira.

Apesar da desordem que imperava na sala e na cozinha, ele gostava do estilo boêmio e rock and roll da decoração: a prancha de surfe de madeira laqueada pendurada no teto, luminária coral, a luneta de latão niquelado, a jukebox de época...

Passou meia hora bisbilhotando as prateleiras da estante, fuçando aqui e ali de acordo com sua inspiração. Na escrivaninha, estava o laptop de Harry. Ele o ligou sem demonstrar a menor hesitação, mas o aparelho era bloqueado por senha. Tentou algumas combinações extraídas do universo do autor, mas nenhuma delas lhe permitiu adentrar os mistérios da máquina.

Nas gavetas, pegou dezenas de cartas de leitores dos quatro cantos do mundo enviadas a Harry. Alguns envelopes continham desenhos, outros, fotografias, flores secas, talismãs, medalhas, amuletos... Durante mais de uma hora, leu com atenção todas aquelas mensagens, constatando surpresa que um número significativo falava demais.

No tampo da mesa, um monte de correspondências que Harry nem se dera o trabalho de abrir: contas, extratos bancários, convites para lançamentos, cópias de artigos de jornais enviadas pela assessoria de imprensa da Doubleday. Sem hesitar por muito tempo, abriu a maioria dos envelopes e destrinchou a lista de despesas do escritor, mergulhado no relato de jornais a respeito de seu rompimento com Aurore.

Enquanto lia, dirigia olhares constantes para o sofá, certificando-se de Tom continuava dormindo. Por duas vezes, deixou seu assento e puxou o cobertor dele, como feito para cuidar de uma criança doente.

Olhou com o mesmo vagar os slides com as fotografias de Aurore no porta-retratos digital instalado no aparador da lareira. A pianista transmitia jovialidade e graça incomuns. Algo de intenso e puro. Diante daquelas fotos, “Tommo” não pôde evitar de se perguntar ingenuamente por que determinadas mulheres recebiam tanto no nascimento – beleza, educação, riqueza, talento – e outras não.

Em seguida, prostrou-se diante de uma janela e observou a chuva batendo nos vidros. Via seu reflexo na vidraça e não gostava da imagem que era devolvida. Em relação a seu físico, ele sempre ficara divido: achava o rosto anguloso e a testa larga demais. O corpo desajeitado o fazia parecer um gafanhoto. Não, não se achava bonito com sua bunda grande, quadris estreitos, o andar esquisito de varapau e a barba que estavam surgindo de modo estranho em seu rosto. Sobravam as pernas grossas demais para um garoto da sua idade, eram tão afeminadas... Sua “arma fatal no jogo da sedução”, para repetir uma expressão dos romances de Harry. Pernas e a bunda que enlouqueciam muitos homens gays ou bissexuais, mas nem sempre os mais cavalheiros. Expulsou aqueles pensamentos de sua mente e fugindo do “inimigo no espelho”, deixou seu posto de observação para visitar o andar de cima.

No closet do quarto de visitas, descobriu um armário impecavelmente organizado. Sem dúvidas, algumas roupas esquecidas pelo autor quando já não lhe servem no corpo. Deslumbrado feito criança, inspecionou aquela caverna de Ali Babá, que continha alguns itens inevitáveis da moda: um casaco da Adidas, blusas da Gucci, alguns etiquetados como se nunca tivessem sido vestidos pelo autor, um desperdício que “Tommo” pensava, calças jeans escuras e pareciam colar no corpo ainda assim de outra marca famosa e que de fato custavam mais do que aqueles móveis modernos da mansão.

Na prateleira corrediça de sapatos, encontrou simplesmente o Santo Graal: um par de all stars, intacto, umas botas masculinas de cores estranhas que fizeram “Tommo” fazer careta e se perguntar aonde que Harry via beleza naquilo, vagou o olhar por agora sapatos casuais também da marca Gucci, todos grandes demais para ele calçar, seus dedos vagam ainda por aquela pilha de sapatos deixados para trás, até parar nos vans novinhos pretos, que eram pequenos demais para Harry usar algum dia, talvez não fosse dele, mas de algum amigo que esquecerá ali. Os olhos de “Tommo” chamuscaram quando puxou os pares e os deixou na palma, emitiam o cheiro de novinhos: eram do seu tamanho. Em frente ao espelho, não resistiu e os calçou, concedendo a si mesmo quinze minutos de realização, por estar com algo tão impressionante nos pés, com uma calça jeans escura que teve de dobrar — pois as calças de Harry eram grandes demais — mas aquelas apertavam em suas cochas e definindo seu bumbum e uma blusa de algodão dos Rolling Stones, tenho o desenho desbotado na frente, também colocou a jaqueta jeans clara dobrando um pouco das mangas para ficar mais confortável.

Terminou o passeio pela casa adentrando o quanto de Harry. Ficou surpreso ao ver que o ambiente estava imerso em uma luz azul quando não havia luz nenhuma acesa. Voltou-se para a tela na parede e observou, fascinado, o doce enlace dos amantes.

Trespassado a penumbra, o quadro de Chagall tinha algo de irreal e parecia iluminar a noite.

Notas Finais

Espero que estejam gostando ^_^

O garoto de Papel Where stories live. Discover now