6 - Sam

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A chuva tinha caído grossa e bruta, como no amor quando se
derruba sobre a cama com uma violência incontida. Mas agora a via serena, riscos finos e delicados gotejando sobre o vidro da lanchonete. Quase aquele
amor delicado e sereno, feito sem pressa de tocar, longo e preguiçoso. Sorri para minhas idéias bestas. Eram muitas minhas idéias, que corriam a mente feito um turbilhão que me ajudava a esquecer o mundo ao redor. Podia ser horas que eu sentira passar como um minuto, ou minutos que custaram horas. Olhei para o relógio, não havia passado muito. Mas eu estava ansioso.
Meu reflexo quase transparente contra o vidro me deparava contra meu próprio espelho. Blusa azul marinho, jeans, tênis, boné. Eu ainda achava que
não estava bom. Tinha que conseguir parar com aquele medo de rejeição. Só em pensar no próprio medo me vinha um incômodo e angustiante
sentimento de reprovação que piorava as coisas ainda mais.
Como em um corte seco de cinema ela me apareceu na frente. Um
simples pestanejar e sua imagem se expôs diante de mim iluminada pela luz amarelada do teto. Cabelos castanhos com franja que quase cobriam seus olhos, azuis e calça preta, não precisava
perguntar, era a ela, duplamente mais bonita que a pessoa que
eu desenhara na imaginação.
_Você é... _ ela apontou para mim.
_Você é a Cait? _ Tomei um impulso para reagir e levantei. Sorri e a cumprimentei.
_Eu não te vi chegar... _ estranhei.
_Talvez porque você está sentado de costas para a porta de
entrada? _ ela riu e percebi que sua raiva inicial de mim já devia ter passado.
_Mas a parede é de vidro e daqui eu posso ver a entrada externa. _
argumentei.
_Ah! _ ela olhou para trás. _ É verdade. Então, é porque eu estava no banheiro, aí quando chegou não me viu...
_Você me propôs um café, costuma beber em pé? _ perguntei.
_Não!
_Deixa comigo. _ puxei sua cadeira e tentei ser cortês para consertar a imagem que tinha de mim.

Pedimos um café e conversamos amenidades, ainda dentro daquela
distância hesitante do primeiro contato, mas eu preferia assim, sem muita fluidez de falsa intimidade. O silêncio também é importante, mas para ela parecia incomodar, pois segurava a xícara com muita intensidade entre os dedos. Paguei a conta e lhe dei o dinheiro do vestido, não queria atrapalhá- la mais. Parecia importante. Eu não queria tomar seu tempo, por mais que quisesse pedir para ficarmos ali conversando.
De repente, algo me ocorreu. Eu tinha dado o meu cartão de crédito e alguém poderia reconhecer meu nome. Não queria que Cait percebesse e estragasse tudo entre nós. Olhei para trás e vi as garçonetes com aquele olhar de conferência. Essa não. Pedi licença e me levantei para buscar o cartão. Queria fazer tudo muito rápido, mas não adiantou. Elas partiram para cima de mim com papéis e caneta pedindo autógrafo. Será que tinha alguém lá fora
vigiando a gente? Fotógrafos, jornalistas?
Meu coração começou a acelerar e eu caminhei a passos firmes até
a mesa. Falei para Cait que precisava ir embora.
_Desculpe, mas vou ter que ir. Lamento... Eu... Você tem meu
telefone né?
_Espera! _ ela veio atrás de mim.
Abri a porta de vidro e corri para o meu carro. Bati com as mãos no
bolso para lembrar onde estavam as chaves, puxei bruscamente e ela caiu no chão.
Cait abaixou-se e a pegou antes de mim.
_ Por favor..
_O que está acontecendo? _ ela perguntou, guardando a chave
como garantia.
_Por favor, me dá logo... _ perdi a paciência.
Ela puxou meus óculos e eu me senti nu. Abaixei o boné e senti que meu coração batia já dolorido no peito e a respiração não estava sendo suficiente.

_Por favor, eu preciso ir embora. _ implorei.
_Por que está fugindo de mim assim? _ ela olhou nos meus olhos e sua voz calma me fez sentir como um animal por estar agindo daquela forma.
_Não é de você, eu juro, eu só quero...
_Fugir?_ ela levantou as sobrancelhas.
_Tira um foto comigo? _ uma garçonete me abraçou e ergueu a
câmera do celular.
_Eu também quero. _ outras seguiram a atitude da primeira.
Cait abriu a porta do carro e, surpreendentemente, pareci estar
ouvindo Stella:
_Gente, ele está muito ocupado, tudo bem? Outra hora!
Eu entrei no carro e ela, também. Ela tinha me reconhecido e agora
sabia quem eu era. Precisava fugir para um lugar seguro. Olhei rapidamente
ao redor para ver se não tinha algum fotógrafo escondido. Acelerei o carro.
Não conseguia pensar em nada só em desviar dos carros e correr para casa. Minhas mãos deixavam manchas de suor no volante a cada manobra e quando eu cheguei na frente da garagem sentia o suor escorrendo pelo meu peito, formando poças na barriga. O portão fechou-se atrás de nós e eu fechei os olhos. Recostei a
cabeça no encosto e senti que tinha saído de uma maratona exaustiva. A pulsação dava para sentir no pescoço e nas veias da testa.
Cait não disse nada, estava tão chocada que não ousava virar o seu rosto para mim.
_Tem alguma chance de você esquecer o que acabou de ver? _
perguntei timidamente.
_Por que eu deveria?
_Porque eu estou morrendo de vergonha. _ falei.
_Vamos sair do carro? _ ela sugeriu.
_Claro. _abri a porta e ela deu a volta para ficar em uma
proximidade que eu recusava, me afastando.
_Será que pode tirar as máscaras? - - ela pediu.
_Não, por favor...
_Está tudo bem. _ sorriu e pegou nas minhas duas mãos e eu sabia
que elas estavam geladas porque nunca me pareceram tão brancas. _ O que está fazendo? _ perguntei, quando senti que ela apertava com as unhas as
pontas dos meus dedos.
_É uma técnica.
_Desculpe, eu...
_Não precisa pedir desculpa. _ Cait levantou o rosto e sorriu mais
uma vez. _ Está tudo bem, ok? A gente pode entrar e beber alguma coisa?
_Claro, claro! _ precipitei-me para abrir a porta, eu me sentia como
um garotinho idiota trazendo a professora em casa que sabe tudo o que deve ser feito.
Ela olhou discretamente a sala e depois permaneceu parada até que eu indicasse a direção da cozinha.
_O que você quer? _ perguntei, abrindo a geladeira.
_Não é para mim, é para você. _ ela consertou.
Peguei a caixa de suco e coloquei um pouco no copo.
_Tem certeza que não quer? _ insisti.
_Quero sim. Depois daquela aventura, preciso recuperar os líquidos. - ela riu.
Pegamos o suco e fomos para a sala. Ela sentou ao meu lado no sofá e ficamos calados. Finalmente eu tinha relaxado e voltado ao estado normal.
Tirei os óculos e o boné.
_ Agora pode me explicar o que aconteceu? _ Ela virou-se para
mim, sentando sobre uma das pernas.
_Precisa mesmo?
_Seria bom, para eu não te achar louco.
_Eu queria pular essa parte. Não gostaria que ficasse com essa
imagem minha.
_Eu não estou preocupada com imagens, mas com o que você
sentiu, Sam.
_Você fala como se nos conhecêssemos há anos. observei.
_Os anos podem começar agora. _ encolheu os ombros.
_Isso.
_Isso o quê? _ ela insistiu.
_Eu tenho síndrome do pânico. _ respondi sem encará-la.

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